Luislinda, a Iansã de toga – Por: Fernanda Pompeu

A cena poderia ter saído da cabeça de um roteirista escrevendo um filme sobre discriminação racial. Mas ela aconteceu de verdade em uma escola de Salvador, Bahia. Uma garota negra de nove anos apresenta o material de desenho requisitado pelo professor:
– Mas não foi isso que eu pedi!
– Bom, isso foi o que meus pais puderam comprar.
– Menina, se seus pais são tão miseráveis assim, vou lhe dar um conselho: pare de estudar e vá aprender a fazer feijoada na casa da branca. Você será mais feliz.
A garota corre para o pátio, chora, enxuga as lágrimas, retorna para a sala de aula e diz ao professor:
– Eu não vou aprender a fazer feijoada na casa da branca. Vou ser juíza e voltar aqui para o prender.
Mais tarde, ao contar o acontecido para o pai, Luislinda Valois levou uma surra. Pois o seu Luiz, motorneiro de bonde e a mãe, dona Lindaura, passadeira e lavadeira tinham a educação como um bem supremo. “Filhos meus não respondem e nem desrespeitam professor”. Até hoje a desembargadora se emociona ao lembrar dessa passagem de infância. Ela afirma não ter raiva do professor: “Ele acabou servindo como estímulo. Fui à luta e me tornei o que quis”.

Longa batalha dias e noites adentro
Trabalhar, estudar e acreditar são os três verbos mais conjugados pela menina: “Perdi minha mãe com quatorze anos, ajudei meu pai a criar os três irmãos, sendo que a caçula tinha dois anos. Foi uma educação com rédea curta e funcionou”. Luislinda deu duro nos empregos e nos estudos, passou no vestibular de Direito da Universidade Católica de Salvador – UCSAL. “Eu sabia que conseguiria, pois só me meto em alguma coisa se acreditar que terei êxito. Passados todos esses anos ainda sou assim. Se tenho competência, avanço. Caso contrário, nem tento”, ela explica. Os filhos do seu Luiz foram melhorando de vida e um dia um deles passou em um concurso na Petrobras. No mês seguinte, fez um supermercado com o do bom e o do melhor. “Ao ver as compras, meu pai nos chamou e disse: “Meus filhos acabou a miséria nesta casa! Nunca irei esquecer esta frase, como nunca esqueço do meu pai, um homem de uma honestidade imaculada. Ele morreu com 110 anos”, ela conta. No mesmo ano em que se formou em Direito, Luislinda prestou concurso para a Procuradoria Federal. Eram apenas quatro vagas. Quando soube do concurso, ela disse: “São apenas três vagas, porque uma já é minha”. Não deu outra. A filha do motorneiro e da lavadeira passou em primeiro lugar.

Vida de negra é difícil
Luislinda Valois levou o primeiro lugar, mas não a vaga na Procuradoria da Bahia. Havia um apadrinhado. Ela protestou: “É uma questão de justiça, eu fui a melhor”. Não teve jeito, ofereceram a procuradoria em Sergipe ou Paraná. Que ela escolhesse. Um mês depois, Luislinda desembarcou em Curitiba com gato, cachorro, marido e o filho querido, Luís Fausto – hoje promotor de Justiça. “No Paraná, ao contrário da Bahia, me senti uma rainha. Fiz grandes amigos e aprendi bastante. Foi lá que tive a certeza de que a gente trabalhando consegue muita coisa”, ela reflete. Passados seis anos, preocupada com o pai velhinho em Salvador, Luislinda enfrenta mais um desafio: prestar concurso para Magistratura na Bahia. “Quando meu pai leu no Diário Oficial que eu havia passado, quase enlouqueceu de alegria. Ele me recepcionou em sua casa com duas garrafas de cerveja na janela”, ela rememora. Uma vez juíza, ela decide revisitar aquele professor que a aconselhou a trabalhar na casa da branca. Procura-o na escola, mas ele havia falecido. Luislinda lutará intensamente para levar a justiça aos moradores de comarcas do interior baiano. “Eu não estou nesta vida para passear. Respeito todo o mundo e dou atenção especial aos PPPs – pretos, pobres e periféricos”, ela declara.

Enfim desembargadora

A primeira juíza negra, com cabelos vermelhos e guias de orixás, conquistou, depois de muita batalha – pois como ela diz “negro não tem padrinho” – o título mais alto da Justiça Estadual, o de desembargadora. Tomou posse no Tribunal de Justiça da Bahia, em dezembro de 2011. “Senti felicidade não apenas por mim. Acho que passei o recado para mulheres e homens negros. A mensagem de que eles podem sim assumir cargos de poder. Abri estradas, agora cabe aos mais jovens trilhá-las”, afirma com ênfase a filha de Iansã, por sua vez, rainha das ventanias, raios e trovões. Luislinda Valois defende uma justiça honesta e plena, aquela que vai além da mera aplicação da lei. Palavras dela: “Justiça tem que existir na mesma medida para brancos e negros, pobres e ricos. Sem preconceitos e discriminações. Apenas quando o branco e o negro repartirem os mesmos espaços e oportunidades é que o Brasil será feliz”.

Fonte: Yahoo

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