Luta contra o racismo é fundamental para a reconstrução democrática

Enviado por / FonteUOL, por Ricardo Abramovay

Nos Estados Unidos, o governo Biden está provando que, na luta contra o fanatismo da extrema-direita, a ousadia é uma estratégia mais eficiente do que a moderação. No caso norte-americano, isso se traduz em duas orientações decisivas. A primeira consiste em colocar o combate às desigualdades, e especialmente ao racismo, no centro das políticas públicas. A segunda é fazer do enfrentamento da crise climática o eixo decisivo das inovações tecnológicas sobre as quais o próprio crescimento econômico deve apoiar-se na próxima década.

Estas orientações não resultam de uma tecnocracia iluminada que as julgou as mais adequadas para o momento atual, em que pese a qualidade dos nomes que Biden levou ao governo. Elas só emergem como resultado da força dos movimentos sociais que lhes são subjacentes.

Se a ativista Stacey Abrams teve sucesso em persuadir as mulheres e homens negros da Georgia a comparecer massivamente às urnas, foi porque não tinha meias palavras para denunciar o fato de que, nos últimos anos, seus direitos políticos estavam sendo sistematicamente violentados — e que tanto a polícia como o sistema carcerário norte-americano tinham se convertido em dispositivos voltados a perpetuar o que o excelente livro de Isabel Wilkerton não hesita em chamar de sistema de castas existentes no país.

Mas o poder de Stacey Abrams vai muito além da denúncia. Ele reflete a força de movimentos sociais que estão não só ampliando sua influência sobre as mais variadas políticas públicas, mas alterando o quadro cultural, a visão de mundo de uma sociedade onde o trabalho escravo foi tão importante.

Nos Estados Unidos, em que menos de 15% da população é negra, a luta contra o racismo converteu-se no epicentro da reconstrução democrática. O resgate da dignidade do trabalho, a economia do cuidado, a reconstrução das famílias dizimadas por décadas de crença de que a concentração de renda acabaria por provocar um gotejamento da riqueza, que beneficiaria a base da pirâmide social, nada disso se faz sem que se reconheça a importância, as capacidades e a contribuição dos negros (e sobretudo da mulheres negras) para a vida social norte-americana.

O mais importante ponto de partida para a esperança de que a vitória sobre o fanatismo de extrema-direita, no Brasil, represente mais que uma volta ao que tínhamos antes de 2018 está em colocar a luta contra o racismo como o vetor decisivo da reconstrução democrática. E se você acha que, aqui, estamos muito aquém daquilo que os movimentos sociais negros conquistaram nos Estados Unidos, precisa com urgência conhecer a vida de Sueli Carneiro, ativista, filósofa, escritora e uma das mais férteis pensadoras brasileiras. O livro de Bianca Santana “Continuo Preta – A vida de Sueli Carneiro, que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras, é uma excelente contribuição para tanto.

Junte a isso a escuta do podcast Vidas Negras e você vai se dar conta que temos um vasto conjunto de ativistas, intelectuais, formuladores de políticas públicas, religiosos, jornalistas, cientistas, artistas e organizações que estarão no cerne da reconstrução democrática se não quisermos que o pesadelo atual seja substituído pela perenização do nosso próprio sistema de castas.

O livro de Bianca Santana se lê como um romance, que gira em torno dos diferentes mecanismos que procuraram apagar a história, a memória e os próprios vestígios da escravidão. Ao mesmo tempo, por meio da vida de Sueli Carneiro e sua família, o livro mostra a permanente e variada resistência a que estes mecanismos de negação davam e dão lugar.

A foto da capa do livro é chocante. Nela, Sueli aparece sentada num banco escolar, e sua presença negra contrasta com a cor da pele de todos seus colegas. Ela era “a menina preta da escola”. Durante seus anos de formação, Sueli nunca teve uma professora negra. Sua vida foi marcada não apenas pelas evidências do racismo, mas, especialmente, pela violência que ela constatava em seu cotidiano contra as mulheres negras.

Em seu primeiro livro, de 1985, em coautoria com Thereza Santos, ela mostra que metade das mulheres negras brasileiras tinha até um ano de estudo, em 1980. Mas além do bloqueio do acesso à educação, Sueli denunciou também, em outros trabalhos, a própria violência doméstica: 2,4 milhões de mulheres haviam sofrido violência doméstica em 2013. Deste total, nada menos que 1,5 milhão eram negras.

Estes dados e sua própria vivência fizeram de Sueli Carneiro uma ativista que sempre se insurgiu contra a ausência de mulheres negras nas direções dos movimentos feministas. Ela contribuiu de forma decisiva para alterar este quadro, mostrando a importância das iabás (orixás femininos) num trabalho sobre o poder feminino no culto aos orixás. Em 1988, Sueli se junta a outras ativistas negras e forma o Geledés — Instituto da Mulher Negra. Geledés, nas sociedades tradicionais iorubás, explica Bianca Santana, são organizações secretas de culto ao poder feminino. Hoje, são consideradas Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.

Esta experiência e este universo convidam o trabalho acadêmico de Sueli Carneiro a contestar as bases teóricas do pensamento político em que se apoiava e se apoia o ensino nas universidades brasileiras. Nossos estudantes das ciências do homem e da sociedade dificilmente terão contato com autores não originários da cultura europeia, masculina e branca. Sueli Carneiro abriu caminho para ampliar a noção de universalidade apoiando-se em pensadores negros norte-americanos e africanos (mas também em Michel Foucault).

Talvez a mais importante contribuição de Bianca Santana, em sua linda biografia, esteja em mostrar que Sueli Carneiro não é uma voz isolada. Hoje, no Brasil, pensadores e ativistas negros contribuem de forma criativa para ampliar o conhecimento do que nós somos e para a transformação daquilo que mais fere nossa convivência. É destes pensadores e dos movimentos sociais a que eles têm dado lugar que depende a ambição de que a vitória sobre o fanatismo fundamentalista abra caminho a uma sociedade capaz de valorizar a contribuição social, cultural, política e econômica da maioria, formada por homens e mulheres negras.

 

Ricardo Abramovay é professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP. Foi Autor de “Amazônia: Por uma Economia do Conhecimento da Natureza” (Ed. Elefante/Terceira Via, São Paulo).

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