A luta da UFSB no combate ao racismo no Sul da Bahia

A encruzilhada do combate ao racismo hoje tem muitos caminhos. Inclusive o silêncio e o silenciamento. Por exemplo, não é possível ignorar que nas famosas reuniões da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais (ANDIFES) agora teremos um rosto negro (o único), com vasta produção em sua área, que é a recém-empossada reitora da UFSB, a professora Joana Angélica. Não é um fato menor.

Por Gabriel Nascimento Do Vermelho

Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) Foto: Reprodução/Vermelho

Quando, em 2013, surgiu a notícia da chegada da UFSB, houve um poço de esperança e desconfiança com sua chegada, sobretudo para quem era do sul da Bahia, como eu. No entanto, aos poucos ela foi sendo entendida como uma grande via de desenvolvimento dessa região imensa, com várias costas e tão diversos territórios de identidade.

E a UFSB foi ousada sim. É verdade que não avançou mais porque, sendo uma das últimas universidades federais construídas na era Lula/Dilma, bateu de frente com um golpe, um governo usurpador e golpista que tem sucateado tudo que é público no país, e uma assassina PEC 55, agora Emenda Constitucional 93. Mas é verdade, também, que o plano de expansão dos colégios universitários fincou na universidade o grande objeto de combate ao racismo na nossa região através de um projeto de universidade regionalizada.

Depois das universidades com projetos distintos do Reuni (o programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais dos governos de Lula e DiLma) com inserção multicampi e interiorização, em que universidades como a UNILAB ou UNILA cumpriam papéis de integração internacionalista Sul-Sul, ou como a UFABC que cumpria um papel ligado à integração com o setor produtivo, ou ainda a UFFS e a UFVJM que repensavam os territórios e identidades mais pobres de cada região e pensavam a inserção regional da universidade como forma de combater a pobreza, êxodo rural e promover a agricultura familiar, ou ainda a interiorização dos campi de universidades federais tradicionais, a UFSB era a menina dos olhos de ouro de quem pensava currículo universitário e ações afirmativas desde a base no país.

A UFSB foi ousada em termos de currículo e inserção regional. O seu projeto do currículo se alarga e se conecta ao da inserção à medida que sua proposta afirmativa mais ousada era a Rede Anísio Teixeira de Colégios Universitários, em que as próprias graduações de primeiro ciclo já começassem a funcionar na rede pública estadual com 85% de reserva de vagas para esse público. Para quem vem discutindo o projeto das cotas desde Durban, isso era quase mágico. Se não fosse o golpe, Temer e a Emenda 93.

Por outro lado, a UFSB também foi ousada no diálogo com o projeto de ações afirmativas para a graduação já existente em lei e nas demais federais. A comunidade acadêmica teve a coragem de reservar 55% de vagas nos campi e 85% nos colégios universitários para o ingresso nas chamadas graduações de primeiro ciclo.

Aquilo era uma boa primeira resposta ao golpe e a Temer (mesmo tendo acontecido antes do golpe) de que essa universidade ia continuar resistindo. Mais tarde, mesmo com forte resistência interna, a aprovação de 75% das vagas para ingresso nas graduações de segundo ciclo colocaram a UFSB na grande encruzilhada do combate ao racismo regional nesta quadra de nossa história.

(Na foto Gabriel Nascimento)

A autodeclaração foi uma das maiores tecnologias do nosso tempo. Fizemos até melhor que os Estados Unidos. O Estatuto da Igualdade Racial estabelece em suas premissas que agora este país devia admitir que há negros vivendo nele, forçando inclusive os candidatos nas eleições a se autodeclararem.

Passados mais de 10 anos das cotas, os cursos de Medicina, Direito, Engenharias pouco se escureceram. Isso é visível. Basta passear dez minutos em qualquer faculdade de saúde do país. Parece a mesma coisa de andar pela Alemanha.

Das duas uma: ou a lei de cotas excetua alguns cursos ou tudo isso não passa de um grande processo (que inclui cúmplices entre os agentes de Estado) de fraude. Bastaram as primeiras denúncias aparecerem em algumas grandes universidades, como UFRGS, UFMG ou UFF, para que a discussão da autodeclaração fosse reaberta por conta do racismo e da afroconveniência.

O racismo no Brasil, que é de marca e não de origem (no caso dos negros), soube utilizar a autodeclaração como sua tecnologia de burlar as cotas. Não em Letras e Filosofia. Mas em Medicina e Direito.

Isso levou o Ministério Público Federal a sugerir comissões de verificação das fraudes. O argumento jurídico é simples. Na decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, impetrada pelo DEM para proibir verificação de cotas na UnB, e na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41, o Supremo Tribunal Federal já tinha decidido pela constitucionalidade das chamadas bancas de verificação.

O racismo é tão cruel que até gente que era contra as cotas hoje frauda as cotas nas universidades e concursos públicos. Quando permitiu as comissões ou bancas, o Supremo prezou pela isonomia constitucional ao entender que, para promover diversidade, era necessário conceber a existência de grupos específicos.

No Estado da Bahia a questão é ainda mais grave por termos a maior população negra depois da África. Enquanto em estados como o Rio Grande do Sul as denúncias pipocam, aqui caímos na bobagem de não entender que, neste momento, combater o racismo estrutural é combater a fraude.

O candidato da fraude em geral sequer passa pela suspeição do que chamamos de branco baiano, que é aquele branco logicamente diferente (porque os brancos são diferentes e não há nenhum problema nisso) do branco do Sudeste.

Em geral, o candidato é um branco do Sudeste que rememorou na história dos ancestrais algum negro, em alguma posição. Ele que, muitas vezes, lembrava só dos antepassados italianos, a quem avocava pelo próprio sobrenome, agora lembra de uma personagem que ele mesmo não lhe sabe e nem lhe atribui história.

Essa é a forma de chamar a atenção das pessoas brancas sobre o racismo como crime perfeito (retomando a insistência do antropólogo Kabengele Munanga): nem pessoas brancas e muito menos as negras têm direito a conhecer seus ancestrais negros.

Mas uma coisa temos que admitir: os pretos e pardos é que sofrem diretamente o racismo cordial e o estrutural, que são perseguidos e assassinados pelas forças paramilitares do tráfico e das polícias dos estados. Basta passear no Maria Pinheiro, em Ferradas (onde fica a sede em Itabuna), no Parque Ecológico ou no Paraguai (em Porto Seguro). Há um genocídio da juventude negra acontecendo a fraude das cotas é a grande cúmplice.

A encruzilhada do combate ao racismo hoje tem muitos caminhos. Inclusive o silêncio e o silenciamento. Por exemplo, não é possível ignorar que nas famosas reuniões da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais (ANDIFES) agora teremos um rosto negro (o único), com vasta produção em sua área, que é a recém-empossada reitora da UFSB, a professora Joana Angélica.

Não é um fato menor. Imaginem João de Deus do Nascimento, herói da Revolta dos Malês, e Maria Felipa (heroína da independência do Brasil) vendo essa cena. É da ancestralidade de um povo milenar que surge o desejo da melhor justiça. Dos bancos de faculdade às reitorias, da participação na política à presidência da república. Queremos estar onde haja poder.

Neste momento, nessa encruzilhada, é preciso lutar pela justiça. E a justiça é aquela que adota a seriedade frente ao seu povo. Ao citar sempre a encruzilhada, aprendi com os meus que nela não é possível ser neutro.

Ou se é ou não se é. Isso porque a encruzilhada nos joga para algum dos caminhos e é nele que devemos estar respondendo ao nosso povo. Neste momento a UFSB está no lugar desconfortável da encruzilhada e deverá, com uma gigante qualidade de sua comunidade, dar a melhor resposta. Sem titubear. O tempo da história não espera ninguém

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