Machistas anônimos

acabo de fundar o MA, o Machistas Anônimos, alternativa terapêutica com excelente perspectiva profilática.

Reprodução/ Twitter

Por Lelê Teles Enviado para o Portal Geledés

ninguém nasce machista, torna-se machista.

taí um mote sensacional para o próximo exame do ENEM, mas nem vai rolar porque a seleção agora está sob a custódia do patriarcado, dos cabras do machistério.

ué, você se tornou feministo agora, perguntou-me um energúmeno; assim, mudando a palavra para o masculino.

é amigão, eu respondi, estou procurando um lugar melhor para viver; esse mundo que eu habitava, digo esse meu mundo interior, tava meio poluído, tinha lixo demais acumulado.

mas você vai continuar sendo chato na mesa do bar e nas redes sociais toda vez que alguém fizer uma brincadeira que você julga machista?

ah, mas é claro amiguinho. e mais, essa reunião aqui é o pontapé inicial de uma onda que vai se agigantar.

enquanto eu falava com o amiguinho, cumprimentava os estranhos que chegavam e iam se sentando. fui mais enfático com o rapaz:

é o seguinte, meu camarada, não tem mais arrego. a conversa agora é de homem pra homem. você veio para a reunião porque sabe do contexto, procura um lugar para se sentar e espera a tua vez.

e ele insistiu mais uma vez, quase cochichando ao meu ouvido, talvez temendo a participação dos presentes em suas indagações:

tem mulher machista, tem gay de direita, tem negro contra cotas, o mundo é cheio de contradição, você acha que pode mudar o mundo?

ah, amigão, deixa o mundo em paz, eu quero mudar é as pessoas. muitos desses personagens que você citou aí são vítimas de um discurso, de uma ideologia.

talvez estejam a reproduzir, acriticamente, as perversões da cultura do ódio; criaturas tão paradoxais geralmente são subprodutos da midiotia, meros bonecos de ventríloquo usados como inocentes úteis para manter o status quo. dá uma olhada nessa sala, veja quantas pessoas dispostas a se livrar desse fardo, cara. senta lá, vai.

ele se sentou.

eu havia postado um textão no Facebook contra a cultura do patriarcado e convidando homens a se livrarem do carga pesada do machismo, esse peso que carregam desde o berço.

trinta e três homens haviam aceito o convite e vieram participar do grupo de apoio; boa adesão, um bom começo, 33 é a idade do homem ressuscitar.

a reunião ocorre em uma sala ampla, com cadeiras em semicírculo. aqui  há diversas variações de macho-adictos: sexólatras, taradinhos de redes sociais, sarradores de garotas em transportes coletivos, cantadores baratos, bêbados abusados, galãzinhos metidos a besta etc.

cheguei me apresentando: bom dia, senhores. o machismo mata. sejam bem vindos ao MA. quanto mais homens como nós nos livrarmos desse mal, menos mulheres morrerão somente por serem mulheres, muitas deixarão de ser humilhadas nas ruas, nas escolas, dentro de casa.

nunca mais aceitem uma violência simbólica contra uma mulher como se fosse uma mera brincadeira de bar.

a macho-adicção é um vício milenar entranhado em nossa cultura, é bom porque nos dá um barato que é o privilégio. como todo vício, não nos livramos dele da noite pro dia, é um exercício diário.

mas antes de curar os outros, curemo-nos. Já podemos começar.

me chamo Xandão, levantou-se o bombado da cara quadrada se apresentando ao grupo.

oi, Xandão. disseram todos, em coro. Xandão continuou:

fui contra o termo presidenta, achava isso uma forçação feminista, uma invenção do PT, depois soube que a palavra é usada em espanhol e que também existe na língua portuguesa, tá até no dicionário.

não percebi o quanto a sonoridade do artigo feminino, associado a uma palavra de poder, empoderava as mulheres.

só por hoje não vou ser mais machista.

disse isso e se sentou.

os outros foram se levantando e se apresentando, um por um:

sou Jânio.

oi, Jânio, repetiu o coro.

eu obrigava minha esposa a transar comigo quando ela dizia estar indisposta, eu dizia, se não tá dando pra mim tá dando pra outro. ou ameaçava, ou dá pra mim ou vou comer outra.

eu estava a oprimi-la, achando que exercia um direito. só por hoje não vou mais ser machista.

nessa manhã, o nosso primeiro encontro, ouvi as mais variadas confissões, todas francas e ditas por homens que agiam como viciados, começavam humilhando a irmã em casa, sem serem admoestados pelos pais, depois passavam a destratar a própria mãe, aí esbofeteavam a primeira namorada e, quando menos esperavam, estavam em estádio de futebol mandando uma presidenta tomar no cu, chamando uma sexagenária de vaca etc.

precisavam de uma dose cada vez maior de machismo.

daí para o estupro era uma questão de “oportunidade”.

nosso encontro ocorre uma vez por semana, acho que esse grupo vai crescer muito e se espalhará por todo o país.

você também pode montar uma célula aí no seu bairro, na sua escola, na sua igreja.

só exigimos o anonimato dos frequentadores e que se coloque uma frase de Rousseau, bem grande, decorando a sala:

o homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe.

palavra da salvação.

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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