A identidade que construímos ou que, erroneamente, nos é construída, perpassa pelos valores da sociedade em que vivemos e pela forma como ela foi edificada. O movimento feminista clássico, apesar de ter muitos méritos, não foge às relações racistas que tanto impregnaram e continuam a impregnar o nosso país.
por Michele Sodré
O local reservado às mulheres negras dentro do feminismo, por muito tempo, foi secundário. As nossas especificidades e as nossas pautas quase nunca eram levadas para o centro do debate. As principais bandeiras feministas, como liberdade para circular nos espaços públicos e para trabalhar na rua, nunca fizeram parte da realidade das mulheres negras. Sempre trabalhamos nas ruas, sempre nos lançamos ao mercado informal em busca de sobrevivência. Já conhecíamos o trabalho fora de casa desde a escravidão. Então, é importante expor a que mulher a maioria das bandeiras feministas se referem: a mulher branca de classe média.
Apesar de transitarmos nos espaços públicos desde muito cedo, sempre desempenhávamos um papel acessório, às vezes, invisibilizado. Raramente, aparecíamos como protagonistas da história ou como seres dotados de capacidade. Ainda há quem insista em nos representar como a serviçal, aquela que pode ser explorada, que agüenta o trabalho pesado e que é desprovida de emoções. Aliado a isso, muitas vezes, acabam nos envolvendo em cenários desestabilizados, onde nossas famílias são desestruturadas e as relações de carinho e afetividade parecem não existir. Onde foi mesmo parar o sexo frágil de que tanto falam? Pois bem, esse rótulo nunca foi direcionado às mulheres negras. As feministas sempre lutaram para que essa idéia de sexo frágil fosse desmistificada, mas as negras sabiam, desde o início, que ninguém as englobava como frágeis, afinal, os nossos traços nada têm de semelhantes com os padrões que a mídia e a indústria do entretenimento veiculam. Não temos nada em comum com as princesas dos Estúdios Walt Disney nem com as protagonistas das novelas. Quando aparecemos em destaque, é de uma forma lasciva, onde somos lembradas como “Da cor do pecado”.
Em meio aos estereótipos, as mulheres negras constroem outra história sobre si mesma. Com pautas específicas e que dialogam com a realidade de quem sofre a perversidade do racismo diariamente. Militamos em diferentes âmbitos e pautamos os nossos direitos. Fazemos isso com Educação, quando defendemos as cotas e a permanência nas Instituições de Ensino Superior; quando disputamos a saúde pública e exigimos que as doenças que mais afetam a população negra não sejam tratadas com descaso, e que haja humanização nos partos normais. Não raramente também, nos mobilizamos para denunciar programas de TV racistas, que nos representam como aberração. Inclusive, a vigilância para com a mídia tem sido constante, principalmente pelo fato dela ser formadora de opinião.
O racismo, a sensualização e a violência contra a mulher negra vão desde os livros ao produto audiovisual. Isto quer dizer que, em algum momento do dia, nos depararemos com o racismo e o machismo. Por conseguinte, a mídia contribui negativamente para a construção social e para o imaginário que é feito das mulheres negras, afetando diretamente a nossa auto-estima. Enquanto a mídia “brinca” de nos mostra uma realidade avessa, muitas mulheres negras estão sofrendo violência física, moral e psicológica.
Além de considerarmos as especificidades das mulheres negras, é preponderante avaliar a localidade e o espaço geográfico em que estamos situados. O Brasil desenvolveu seus próprios mecanismos racistas, tem seu passado colonizado, tem resquícios de uma mentalidade opressora e excludente, e tem sérios problemas em reconhecer a injustiça histórica a que negros e negras foram submetidas. Em meio a esses problemas, não podemos importar o feminismo europeu ou norte-americano e querer aplicá-lo à nossa realidade. Obviamente que o diálogo com o movimento feminista deve existir para além do nosso país, pois se configura como aprendizado relevante, mas as feministas negras e brasileiras precisam se empoderar e ser referência não só na América Latina. Quando uma feminista negra se empodera, cria condições para que muitas outras sejam empoderadas.
O feminismo negro não pretende, de forma alguma, criar uma cisão no movimento feminista, o que se pretende é justamente superar essa cisão que já existe. Seria leviano afirmar que o movimento feminista, da forma como estava posto, contemplava as mulheres negras. Na verdade, se destrincharmos as bandeiras clássicas veremos que elas se erguiam pelas e para as mulheres brancas. Com o feminismo negro, com mulheres negras se reunindo para falar de si mesmas, vamos enfrentar e vencer (como fizeram muitas mulheres negras ao longo da história) a sociedade machista e racista que insiste em nos desafiar. Esse é um momento de expormos nossas pautas e de agregar outras mulheres – cada mulher negra que ganhamos para o feminismo fortalece nossa trajetória e enfraquece o racismo. Vamos nos juntar e nos munir das contribuições que Sueli carneiro, Marta Medeiros, Luisa Bairros, Vilma Reis, Zelinda Barros, entre outras, têm dado ao nosso feminismo. Vamos nos preparar para deixar, também, as nossas reflexões para o movimento.
Omitir o recorte de raça em nada contribui para um movimento feminista unificado. É audacioso dizer que todas as mulheres são respeitadas umas pelas outras se ainda, muitas delas, precisam ser subalternas a outras mulheres. Criar condições para que todas as mulheres desfrutem de direitos, se sintam representadas e não sejam oprimidas pelo machismo, significa, necessariamente, combater o racismo. Afinal, não é por deslize do acaso que encontrarmos, em maioria, mulheres negras desempenhando a função de doméstica, sendo mães solteiras e sofrendo inúmeras formas de violência. A pobreza e a exploração no Brasil têm gênero e tem cor. Não queremos com isso, inverter os papéis e submeter mulheres de classe média, o que queremos é respeito, emprego estável, família estruturada e o fim de todas as opressões. O racismo não pode mais ser um divisor na luta das mulheres.
Mais mulheres, mais mulheres negras e mais feminismo negro, esse é o nosso horizonte.
*Estudante de História da UFBA, coordenadora de mulheres do CAHIS, militante do Coletivo Quilombo.
Fonte: Quilombo Coletivo