Mais uma Cláudia, vítima do Estado da barbárie e do racismo institucional

Por: Walmyr Junior

 

 

Não consigo compreender os tons justificativos sobre esse assassinato da mulher, negra, mãe, tia, esposa, amiga, trabalhadora, moradora da favela , que possui um nome: Cláudia da Silva Ferreira.

Me pergunto o que passa na cabeça de um policial quando trata um ser humano como se fosse apenas uma carcaça de animal. Me questiono o que passa no coração de um homem que lança um corpo ferido dentro de uma caçamba da viatura policial. Me questiono o que passa pela formação de uma corporação que tem como fim último acabar com a violência reprimindo a população da favela com balas de aço.

Esse tipo de assassinato só ganha visibilidade hoje, por que através de um vídeo, a prova de um crime foi divulgada. Quando eu vi a reprodução do vídeo, onde o corpo da senhora Cláudia foi sendo arrastado pelas ruas do Rio de janeiro, tive um sentimento de repugnância e perplexidade. Através deste ato, insano e irresponsável, pude observar que a dor desta mulher se assemelha a de tantas outras Cláudias e tantos outros Amarildos que são tratados como animais e desaparecem em nossa dita ‘democracia’.

O caso que estou citando se refere à morte da auxiliar de serviços gerais Cláudia da Silva Ferreira, que foi ferida com dois tiros e ao ser socorrida para o Hospital teve o seu corpo arrastado por 350 metros por uma viatura da Polícia Militar, domingo (16), no Morro da Congonha, em Madureira, na Zona Norte do Rio.

Vivemos em meio a uma confusão de sentimentos em meio ao estarrecido acontecimento. A primeira de dor. Uma mãe é arrancada de seu lar, é alvejada com tiros próxima dos seus filhos e seus parentes. Uma família com um esposo e oito crianças (quatro filhos e quatro sobrinhos) perde brutalmente seu pilar estrutural. Uma mulher que retrata as mulheres de nossas favelas, com toda sua garra e fibra, desejosa por viver e transformar o futuro das suas crianças é arrastada como uma carnça estragada por ‘nossos’ policiais militares. Sinto em minha pele a dor que essa família sente, vejo refletindo do espelho da pobreza a impotência dessa família, vejo pela janela do meu quintal mais um vizinho que sofre com o despreparo das forças de seguranças do Estado.

Surge então a raiva. Como pode um aparato militar não ser preparado para uma incursão em um perímetro urbano? Como pode uma força de pseudo-segurança não ter a hombridade de se responsabilizar pelas vidas que estão na comunidade? Como pode uma ação militar ser conduzida com tanta truculência jogando no porta-mala de um camburão e arrastando pelo chão um ser humano até o estado de óbito? Que polícia é essa que nos proporciona a suposta segurança? São eles: subtenentes Adir Serrano Machado e Rodney Miguel Arcanjo e o sargento Alex Sandro da Silva Alves, militares que para chegarem a essa patente passam no mínimo 10 anos dentro da corporação.

O sentimento do medo. Medo por ser negro e ter um tratamento específico pela polícia militar. Medo por ser favelado e o que aconteceu com a senhora Cláudia se repita na favela que eu moro. Medo por não ter uma política de segurança que esteja do meu lado. Medo de circular pelas ruas e ser confundido com um bandido. Medo por não ter direito de ter paz e segurança nas ruas da cidade onde eu moro.

Outro sentimento que surge é ligado à vergonha que tenho de estar em um Estado que tem a Polícia Militar como força de segurança pública. Vergonha de não ter mais esperança nessa corporação. Vergonha por ver um serviço prestado apenas para uma parcela da população. Vergonha por ver que inúmeros casos como o da senhora Claudia são camuflados pela lei dos ‘autos de resistência’. Vergonha por ter policiais impunes que cometem crimes como este dia após dia e nada acontece.

Diante de tantos sentimentos e tanta indignação me questiono quem está do lado do povo. Me questiono se os justiceiros que espancam e amarram jovens negros em postes vão agir agora quando o criminoso usa uma farda. Quero ver se a revolta da classe média, dona da verdade, vai se pronunciar contra a PM do Rio de Janeiro. Será que a burguesia que não foi atingida vai se pronunciar?

Eu senti raiva dos policiais. Mas depois penso que os verdadeiros culpados não são aqueles pobres homens, que por ora foram expulsos da corporação e já estão encarcerados. Situações como essas só acontecem em um Estado que não tem mais forças para manter um programa de erradicação da violência, como acontece nas famosas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). Acho que a culpa não é só do fardado, acredito que o buraco é mais em baixo, a culpa é da corporação.

* Walmyr Júnior Integra a Pastoral da Juventude da Arquidiocese do Rio de Janeiro. É membro do Coletivo de Juventude Negra – Enegrecer. Graduado em História pela PUC-RJ e representou a sociedade civil em encontro com o Papa Francisco no Theatro Municipal, durante a JMJ.

Fonte: Jornal do Brasil

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