Manual de sobrevivência antirracista

04/08/25
Folha de São Paulo, por Ana Cristina Rosa
Correr na rua, cobrir a cabeça com capuz e andar malvestido podem ser sentenças de morte para negros no cotidiano

Quem é negro precisa conhecer e seguir desde cedo um verdadeiro manual de sobrevivência antirracista. Não é exagero. A quantidade de recomendações a serem observadas por pretos e pardos na tentativa de preservar as próprias vidas é enorme. Vai vendo:

Quem é negro não pode correr na rua para não parecer que está fugindo. Não pode cobrir a cabeça com capuz para não parecer suspeito. Também não pode entrar em loja com as mãos no bolso para não dar a impressão de que está portando uma arma.

Manifestante negra participa de ato em frente ao Theatro Municipal contra a violência cometida pela Polícia Militar de São Paulo e segura sobre sua cabeça, um cartaz com a inscrição "Pelo Fim da Violência Policial", em letras roxas, escritas sobre fundo branco
Manifestante participa de ato em frente ao Theatro Municipal contra a violência cometida pela Polícia Militar de São Paulo – Bruno Santos – 5.dez.24/Bruno Santos/Folhapress

Quem é negro não pode ficar nervoso em caso de abordagem policial para que os agentes não presumam que fez algo de errado ou tem algo a esconder. Não pode sair de casa sem levar um documento de identidade para provar que não é bandido. Também não pode andar “malvestido” para não ser confundido com “mau elemento”. Em geral, negro não pode ostentar riqueza para não levantar suspeição sobre a propriedade do bem.

Quem “ousa” contrariar esses conselhos (que nas famílias negras costumam ser passados de pais para filhos há gerações) pode estar assinando a própria sentença de morte. Afinal, negligenciar esses alertas pode ser (muitas vezes, de fato, é) fatal. Inclusive numa circunstância banal como dar uma corridinha para não perder o ônibus.

Foi o que aconteceu com Guilherme Dias Santos Ferreira, 26 anos, no dia 4 de julho, em SP. O jovem foi morto por um “erro de avaliação” cometido por um policial militar que confundiu o trabalhador negro com um bandido. Guilherme andava apressado para chegar num ponto de ônibus em Parelheiros, no extremo sul da capital paulista, quando foi baleado na cabeça.

Um homem está posando em frente a um mural colorido que apresenta uma onça e vegetação tropical. Ele está vestido com um terno claro e uma gravata rosa, com os braços cruzados e um sorriso confiante. O fundo é vibrante, com tons de verde e detalhes da fauna.
Guilherme Ferreira foi baleado por PM depois de sair do trabalho, no caminho do ponto de ônibus – Reprodução/TV Globo

Atirar na cabeça é ato que carrega enorme simbolismo e demonstra a intenção de matar. Raros são os casos de sobreviventes após o alvejamento nesta parte do corpo, segundo dados da medicina forense. Cotidianamente, o Estado segue dando demonstrações do fracasso em garantir que pessoas negras usufruam de direitos humanos fundamentais como a vida.

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