Marlon James mostra o que há de fantástico em reimaginar a África

FONTEPor Pétala Souza, da Folha de S. Paulo
O jamaicano Marlon James, em sua participação na Flip, em 2017 (Bruno Santos/Folhapress)

No seu quarto romance, Marlon James, o premiado autor jamaicano radicado nos Estados Unidos, cria um mundo fundamentado em crenças e mitologias africanas, uma fantasia que se desprende dos referenciais imagéticos e modelos narrativos com os quais fomos educados no Ocidente.

São necessárias quase 800 páginas para descortinar a cosmovisão africana na realidade fantástica de James. Ali, a relação animais-natureza-humanos, ainda que tenha certa hierarquia, pouco se distingue nas possibilidades de interferência na vida.

Não é por acaso que a apresentação do mundo criado por James constrói uma narrativa centrada no confronto entre o que é real e o que é mito, sobre o que significa verdade e realidade.

O narrador sugere que, como a história tem distorções e realidades tão distintas quanto os mitos que surgem dela, a vida também é atravessada por distorções, divergências e, sobretudo, mitos. Quase uma metáfora das noções ocidentais sobre a África.

A hegemonia nas perspectivas da história humana nos põe distantes das cosmovisões africanas. Daí a importância do retorno e da imaginação para as redescobrir, condições necessárias para superar a fase da angústia existencial da diáspora africana, da qual o autor faz parte.

Uma angústia experimentada por não saber de onde se vem nem a que lugar se pertence, a ponto de esquecer o próprio nome, como acontece com o protagonista, o Rastreador.

Nem tudo o que se passou ao Rastreador para que estivesse onde o encontramos, diante do Inquisidor em uma cela de prisão, será revelado, e o que for será feito sem compromisso com a linearidade dos fatos.

Nos percalços de sua memória, o narrador é tão inexato quanto a sua noção de realidade. Afinal, “se os deuses haviam criado tudo, a verdade não seria apenas mais uma criação?”. Será essa busca por dar sentido à história que nos fará acompanhar a missão do Rastreador de encontrar um menino misterioso, desaparecido durante um conflito entre reinos.

Escritor jamaicano Marlon James no Booker Prize 2015, em Londres, na Inglaterra (Foto: Neil Hall/ AFP)

A sexualidade do protagonista, definida como shoga —ou gay ou bissexual, como conhecido aqui—, é outro fator importante na leitura do seu mundo.

Ao mesmo tempo que o narrador apresenta culturas patriarcais e normativas de gênero, fundamentadas por imaginários que estruturam hábitos e culturas notoriamente machistas, misóginas e capacitistas, ele também confronta convenções sobre sexualidade e mostra possibilidades de existência para corpos e comportamentos dissidentes.

A diversidade, assim como as possibilidades do caráter, é presa a diferentes noções da verdade. Não à toa o Rastreador expressa a própria existência, quase sempre, como vacilante. “Dentro de nós, homens shoga, encontra-se uma outra mulher que não pode ser extirpada. Não, não uma mulher; uma coisa que os deuses se esqueceram que fizeram, ou se esqueceram de contar aos homens.”

Essa percepção vacilante do protagonista induz a uma leitura conspiratória da trama —põe em dúvida o que ele está nos contando e, por consequência, todos os que são contados por ele. Mas são esses desencontros que estruturam e dão força ao personagem.

Longe das noções tolkienianas da ética do herói, as representações do livro evocam uma memória africana que é de difícil acesso se partirmos do imaginário ocidental.

A imersão na jornada do Rastreador pode acontecer de forma mais lenta do que a entrada em realidades com regras morais e crenças reconhecíveis —um bom caminho para adentrar a narrativa é a interseção entre a experiência antropológica e o desprendimento da moral colonizadora.

A história de “Leopardo Negro, Lobo Vermelho” não poupa metáforas que desestruturam o real, porque desenterra outros possíveis lugares de existência.

O desconforto com esse imaginário se desfaz caso o leitor se deixe guiar por esse mundo de múltiplos desconhecidos. Assim, o mundo distante não é mais percebido como uma ameaça —pelo contrário, é imaginado como uma rede de afinidades na jornada de busca e desencontro com a verdade.

LEOPARDO NEGRO, LOBO VERMELHO
Preço: R$ 99,90 (784 págs.); R$69,90 (ebook)
Autor: Marlon James
Editora: Intrínseca
Tradução: André Czarnobai

Pétala Souza
Escritora e produtora de conteúdo literário no projeto Afrofuturas
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