Qualquer pessoa negra passa por inúmeras situações de racismo nos meios em que transita. Seja o racismo culposo (aquele que não tem a intenção de ofender, mas ofende) ou doloso (aquele cujo interlocutor usa e abusa do racismo deliberadamente para matar nossa alma). Reparem que usei a licença jurídica para bifurcar as atitudes racistas, porque já sabemos que constitui um crime e devemos começar a tratá-lo como tal. Os alvos principais são nossos cabelos e nossos traços faciais, seguidos da tonalidade de nossa pele e costumes pejorativos que, segundo diversas “teorias” racistas é genético ou faz parte de nosso fenótipo.
Por Joice Berth, do Imprensa Feminina
O mundo racista nos ensina o auto ódio se servindo de todas as ferramentas possíveis: jornais, revistas, filmes e televisão, literatura acadêmica e/ou de entretenimento, teatro, música, ciências, etc. E nós aprendemos, porque por incrível que pareça as pessoas brancas, negros são pessoas dotadas de inteligência!
Odiamos o que vemos diante do espelho. Ensinamos nossos filhos a odiar também. E nossos netos e bisnetos. E desde que fomos arrancados de nosso continente de origem e depositados aqui, esse processo cíclico culmina em manifestações psicossomáticas expressas nos nossos meios de convivência e permanência social.
As meninas negras odeiam seus cabelos, os meninos negros preferem as mulheres brancas, já temos uma população adepta as cirurgias para afinar lábios e nariz que tende a aumentar devido ao poder aquisitivo ostentando uma rasa melhora, produzimos vídeos de insultos aos que utilizam as políticas afirmativas para reescreverem suas histórias de vida, atacamos quem consegue romper com a lógica do auto ódio e passa a ter uma visão crítica da situação em que vivemos, diferentemente dos judeus ou japoneses, aqueles que se elevam adotam uma postura de capitão do mato com os demais, etc.
Nós aprendemos e reproduzimos, nos tornando caricaturas negras a serviço da opressão da supremacia branca, agindo tal qual zumbis, cegos pelo apelo hipnótico dos meios de comunicação que subtrai nosso valor como tática de manutenção de privilégios (a carne mais barata do mercado? Qual é?).
Deveriam as pessoas brancas estarem felizes com os efeitos da sua atuação estrutural, friamente calculada e inegavelmente eficiente? Claro, uma vez que representa a competência de um sistema de base capitalista, que mantém uma legião de pessoas escravizadas pacificamente e acreditando que não são. Isso mantém a mão de obra barata e um cenário propício para o teatro da meritocracia se manter as custas das coxias de nossas desgraças, de nosso desemprego, de nosso genocídio, de nossa exclusão, de nosso apagamento social, de nosso silenciamento intelectual.
Mas as pessoas brancas parecem que não estão muito felizes não! As pessoas brancas estão raivosas, porque aprendemos e usamos, alguns de nós de maneira culposa também (sim, cometemos o auto crime de nos descaracterizar motivados pelo auto ódio a que somos condicionados). Usamos do mesmo truque, parafraseando um famoso estilista brasileiro “se o mundo fez de mim uma puta, farei do mundo o meu bordel”.
É o caso da deusa pop Beyoncé. Muitos a chamam de embranquecida. Muitos a chamam de alienada. Muitos a chamam de vendida. Talvez seja verdade. Ou talvez não. Suas características de mulher negra teriam sido adulteradas para ganhar um espaço que mulheres negras não conquistam impunemente. Sua estética adulterada então, não seria uma atitude de submissão ao sistema e sim, uma atitude de inversão de papéis. Eu me torno o que vocês querem (o mundo fez de mim uma puta) e o dinheiro, a fama, o glamour e o poder de vocês também será meu (fiz do mundo um bordel). Pronto. Isso basta para alimentar a pira da supremacia branca. Ou não?
Na edição de setembro da mais conceituada publicação do segmento da moda, quem ilustra capa e recheio é ninguém menos que a Queen B. (essa denominação dada pelos fãs diz muito sobre o status da mulher negra em questão). É um feito e tanto somado ao título de terceira mulher mais poderosa do mundo artístico, ficando atrás apenas da Naomi Campbell que esteve na Vogue em 1989 e Halle Barry que esteve em 2010.
Mas não para a escritora (branca) Megan Garber, colunista da revista The Atlantic que escreveu em sua coluna uma crítica cretina (trocadilhos a parte).
“There is, however, one other thing that is striking about the cover: Beyoncé’s hair. That hair! That decidedly non-fierce hair! Which is, here, a flat shade of brown, and plainly parted, and notably stringy—not yeah-I-just-got-back-from-a-dip-in-the-Mediterranean stringy, but yeah-I-haven’t-washed-my-hair-in-like-three-weeks stringy. “Drunk in Love” stringy” (Há, no entanto, uma outra coisa que é notável sobre a foto da capa: o cabelo de Beyoncé. Aquele cabelo! Aquele cabelo decididamente está cruel! Que é aquilo, uma pasta marrom e visivelmente pegajosa, parece que acabou de voltar de um mergulho no mar mediterrâneo ou ainda, não lavo meu cabelo há três semanas nojentas. Bêbada de amor pegajoso).
Com essas declarações que misturam racismo com despeito e desrespeito, o artigo da jornalista deixa de ser sobre música ou moda ou até mesmo uma crítica relevante ao trabalho da cantora e passa a ser sobre como as pessoas brancas não gostam de reconhecer em nós os estragos que causam. Pessoas brancas querem impor sua estética e sua cultura, mas necessitam da nossa rejeição para se sentirem felizes com seu próprio autoritarismo. Algo bem sádico, bem confuso.
Como a supremacia branca fica irritada quando percebe que aprendemos a lição e pior, estamos nos valendo disso para proveito próprio, numa atitude consciente e mais politizada que se possa imaginar. Tentando ser imparcial, pois o fenômeno de massa que Beyonce representa, gera um fascínio quase que instantâneo (gosto mais da figura do que das músicas propriamente), não é difícil ver a Queen, nos seus momentos familiares, tal qual ela é, com seus cabelos ao vento e suas roupas de moça simples e familiar.
De Nina Simone a Ray Charles é notável que os astros da música pop perdem muito na indústria poderosa norte-americana de produção musical. Está escrito nos compêndios da história sobre o boicote que Ray Charles sofreu em seu próprio estado quando se recusou a cantar para uma plateia que não aceitava negros. Nina Simone, foi atirada ao ostracismo pelo seu envolvimento com os Black Phanters. Azaelia Banks sobrevive inexplicavelmente a enxurrada de denúncias sobre racismo que faz corajosamente.
Sabemos da fragilidade que carrega nossa condição de mulher e principalmente de mulher negra, que numa pirâmide de privilégios e visibilidade social o lugar onde estamos é na base. Na última escala. As meninas negras do pop também sabem disso. Impõem seu poder e sua presença comendo pelas beiradas, sendo sem ser, aparecendo sem aparecer, incomodando sem incomodar, numa ofensiva questionável, mas temos que admitir bem pensada. Rihanna em seu último sucesso foi duramente cobrada por feministas brancas no quesito ~sororidade~. Nick Minaj, que nem se intitula feminista tem sua pseudo-carteirinha cassada a cada novo hit. Não que isso caracterize uma militância em si, mas também não é um indicativo de inércia e tem resultados expressivos, vide Megan Garber e seu artigo escroto.
Beyoncé e outras divas do pop como Rihanna e Nick Minaj, não se arriscam. Mas será que de alguma forma elas não têm consciência do território em que se colocam, quando usam as ferramentas do senhor e curiosamente desmantelam sutilmente a casa grande (ops! Audre Lord, presente!).
Isso, só o tempo vai dizer, visto que a articulação política dos negro norte americanos é muito mais experiente que a nossa.
De certo modo, esse é o problema da ofensiva contra as cotas e de toda ação racista disfarçada que enfrentamos (do Black face a perseguições virtuais doentias).
Mas de uma coisa não resta dúvidas: a branquitude não sustenta quando o feitiço vira contra o feiticeiro e se olharmos bem medido e bem pesado, usar as ferramentas do senhor pode sim desmantelar a casa grande, ainda que apenas alguns tijolos. Pergunte a Megan Garber.