Nota de Repúdio ao Musical Racista “Single Singers Bar”

Fiquei sabendo desse peça musical pelo catraca livre (que é apoiador desse musical), que divulgou uma promoção onde você baixava um aplicativo no celular (compre ingressos, outro apoiador) e ganhava um ingresso. O musical está em cartaz até dia 29 de Outubro de 2015 no Teatro Jaraguá (que fica dentro do novotel hotels) em São Paulo. Não procurei muitas informações sobre o musical, apenas li que era uma peça com músicas da Broadway e uma ambientação inspirada nos cabarés.

por : Laura Lemos do blog Eu, Preta.

Quando começou a peça, eu e meu namorado já nos incomodamos com 2 fatores:

  1. o elenco é 100% branco e cisgênero;
  2. Três dos cinco homens que estão na peça se caracterizam de mulheres (como sempre). Mais um desses cinco homens usa apenas alguns acessórios considerados femininos (como cinta-liga e meia 7/8) misturados com vestuário considerado masculino.

Mas até aí, tudo bem, a gente já esperava porque tinhamos visto algumas fotos de divulgação do espetáculo. A peça começou, os atores eram bons intérpretes, apesar de não serem bons cantores. Uma pitada de misoginia aqui, uma colherada de machismo ali, tudo dentro do esperado, infelizmente. A peça não estava incrível, mas também não estava ruim. Mal sabia eu do choque que estava por vir…

Três dos atores começaram a cantar uma versão dublada da música “if you could see her” – kander & ebb. Como introdução à musica eles falaram sobre como e com o que eles presentearam sua mulher (dão a entender que é a mesma), numa tentativa de conquistá-la, mas essa mulher não é “merecedora desse esforço”, digamos assim. A frase principal da música é: se você pudesse vê-la com eu a vejo, você entenderia. Eu traduzi a letra completa, está no final do texto para quem tiver interesse em ler.

Enfim… Eis que me chega UM HOMEM CIS BRANCO vestido em uma fantasia de macaca, no pior estilo King Kong. Essa fantasia vinha acompanhada de uma saia e um laço na cabeça, ambos de tule vermelho. Como se toda essa cena de horror já não estivesse me causando mal o suficiente, os 4 atores começam a protagonizar cenas sexuais de uma orgia sem fim, onde a tal da macaca é a parte passiva da relação, que leva todas as humilhações e submissões que geralmente atribuem a uma mulher negra. A preta que tem que ser melhor que uma mulher branca (na música usam argumentos para validar o valor daquela mulher, como se fosse necessário justificar sua atração por ela), que não merece ser conquistada, que não deve ser amada, que precisa ser escondida, que serve para dar uma trepada gostosa, que é exótica, quente, sensual e safada, mas que jamais estará na foto da sua família branca no Natal. A platéia estava indo a loucura, dando muitas gargalhadas e até aplaudindo a cena racista que estava me machucando. Eu muito chocada e visivelmente abalada com tudo aquilo, não esperei o número acabar, peguei a minha bolsa, levantei no meio da apresentação e fui embora.

Cheguei em casa extremamente triste e derrotada, porque eu estou cansada desse racismo sem fim, especialmente quando vem dessa forma brusca e aplaudida pelo público que chama isso de arte. Isso é um tapa na cara de toda a população negra. Isso é um tiro no coração de todas as mulheres negras. Essa hipersexualização e a animalização da mulher negra PRECISA ACABAR! Peças racistas como essa NÃO PASSARÃO!


CONTEXTUALIZAÇAO DO MUSICAL “CABARET”

Dois dias depois de assistir a peça, bem mais calma e centrada, eu fiz uma rápida pesquisa sobre a música e aprendi/deduzi algumas coisas:

  1. Originalmente, a musica em questão faz parte do musical Cabaret que é contextualizado no inicio da ditadura nazista, ela é cantada por um homem alemão que se envolve com uma judia (por isso a desaprovação da sociedade), mas tem medo de casar com ela por motivos que todos nós já sabemos. Isso por si só, já é extremamente ruim.
  2. O musical da Broadway foi, originalmente, escrito em 1966 e que foi baseado em uma peça de teatro em 1951, que, por sua vez, foi adaptada de uma short novel (narrativa mais longa que um conto, porém mais curta que um romance) de 1933. O musical virou um sucesso e foi adaptado para um filme em 1972. Veja bem, muitos anos atrás isso poderia ser considerado “menos pior” (pra não dizer mais aceitável, porque aceitável jamais será); mas estamos em 2015, minha gente, hoje em dia os pretos estão tendo voz, estão ocupando espaços, estamos conquistando direitos, ainda que lentamente. Hoje em dia, se tiver peça racista, a gente vai retrucar.
  3. No Brasil, quem sofre mais racismo não é o judeu, é o negro. É o jogador de futebol negro que é xingado de macaco em plena REDE INTERNACIONAL enquanto a moça racista diz que quer “ser um símbolo nacional contra o racismo” (Leiam a matéria, é sensacional – só que não). É a campanha criada por brancos e para brancos “somos todos macacos”, porque nenhum negro que eu conheço se sentiu contemplado por essa porcaria. É uma peça que coloca um homem branco vestido de macaca fazendo uma nítida personificação daquele pior estereótipo racista da mulher negra. É toda essa cultura racista e hipócrita onde todo mundo pensa e diz que preto é macaco, mas ao mesmo tempo acha que não é racista porque todo mundo diz, porque foi só uma brincadeira, uma piada ou uma comédia. “Deixa a sociedade continuar assassinando e massacrando a população negra, foda-se, eu sou branca mesmo!”. A dor dos outros não incomoda o privilegiado que não está sofrendo, né?
  4. Encontrei dois vídeos que exemplificam o que aconteceu no teatro, porém nos vídeos as coisas acontecem de forma muito mais sutil e menos violenta. O primeiro vídeo é de um filme e o segundo é uma versão ao vivo no teatro. A produção de “Single Singers Bar” levou a performance para um outro nível de estupidez e agressividade quando violenta sexualmente a macaca no palco.

VENHO POR MEIO DESSE TEXTO PEDIR A TODAS AS PESSOAS NEGRAS, ESPECIALMENTE AS MULHERES NEGRAS, QUE FAÇAM BARULHO PARA FECHAR ESSA MERDA DE MUSICAL. PEÇO TAMBÉM QUE TODAS AS PESSOAS NÃO-NEGRAS QUE TENHAM O MÍNIMO DE EMPATIA POR NÓS E PELA NOSSA DOR, QUE NÃO COMPACTUEM COM ESSE TIPO DE ESPETÁCULO! NÃO COMPREM INGRESSO, ESPALHEM ESSA INFORMAÇÃO PARA TODOS OS SEUS AMIGOS PARA QUE ELES TAMBÉM NÃO COMPREM. VAMOS BOICOTAR ESSA PRODUÇÃO LIXO E MOSTRAR PARA ELES QUE O POVO PRETO NÃO É BAGUNÇA!

Não podemos continuar num país que, passados 127 anos de abolição da escravatura, ainda aplaude esse tipo de atitude, que ainda genocida, escraviza, mutila, abusa e faz chacota da população negra. Nós estamos aqui e RESISTIREMOS! Lutaremos até que matem todos nós. Enquanto houver um(a) preto(a) no mundo, haverá resistência, haverá repudio a atitudes racistas.


Tradução Livre da Música “If You Could See Her” (Se Você Pudesse Vê-la), por Kander & Ebb

Eu sei o que você está pensando:
Você imagina por que eu escolhi ela
De todas as mulheres do mundo.
Essa é apenas uma primeira impressão,
Como pode julgar só com uma primeira impressão?
Se você a conhecesse como eu conheço
Mudaria seu ponto de vista.

Se você pudesse vê-la através dos meus olhos
Você não imaginaria de forma alguma.
Se você pudesse vê-la através dos meus olhos
Eu garanto que você iria cair (como eu). [Obs.: cair no sentido de “ficar caidinho”, se apaixonar]
Quando estamos juntos em público
Eu escuto a sociedade cochichando.
Mas se eles pudessem vê-la através dos meus olhos
Talvez eles nos deixassem em paz.

Falado: (Aqui você é minha liebling (favorita). Seu favorito!)

Como eu posso falar das suas virtudes,
Eu nao sei por onde começar?
Ela é esperta, ela é inteligente, ela lê musicas
Ela não fuma ou bebe gin (como eu bebo).
Ainda quando estamos andando juntos
Eles zombam se eu estou segurando sua mão.
Mas se eles pudessem vê-la através dos meus olhos
Talvez todos eles entenderiam.

Por quê eles nao podem nos deixar em paz?

Falado: Meine Damen und Herren, Mesdames and Messieurs
Ladies and Gentleman

É um crime se apaixonar?
Podemos dizer onde o coração realmente nos leva?
Tudo que estamos pedindo é eine bisschen Verstandnis (um pouco de compreensão)
Por que o mundo não pode leben und leben lassen? (viver e deixar viver?)
‘Live and let live…’ (viva e deixe viver)

Eu entendo sua objeção
Eu admito o problema não é pequeno
Mas se você pudesse vê-la através dos meus olhos
Ela não pareceria judia de forma alguma.


Att,

Eu, preta revoltada.

 

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