Masculinidade e Cultura do Estupro

Na terça-feira, dia 24/5, um vídeo é compartilhado no WhatsApp e começa a viralizar. Trata-se de um estupro coletivo executado por 30 homens onde a vítima era uma menina de 17 anos. Rapidamente a notícia viralizou em diversas mídias sociais. Numa lógica doente de disseminação do horror, milhares de “inocentes” neste momento veem o vídeo e compartilham com mais curiosos. Tão criminosos quanto, vulnerabilizam mais a vítima, mostrando mais seu corpo, violentando mais sua privacidade. O show de horrores não para por aí. Nos perfis do Facebook, um monte de homens justificam o ato, colocando a responsabilidade na vítima: “Ela estava bêbada”, “também, andando na favela com aquelas pessoas”, “usava roupa curta”… É uma sociedade muito adoentada e machista. Por falar em machismo, gostaria de direcionar este texto a você, macho. Porque deste assunto eu entendo, e você sabe do que estou falando.

Por Vinicius Dias, do Favela Potente

Nasci e me criei em uma família matriarcal. Naquela lógica antiga, que homens trabalham e mulheres cuidam da casa. Cresci assimilando o que eu via como certo e sem nenhum questionamento. Cheguei à adolescência e percebi que todos os meus tios tinham amantes, e aquilo era um segredo pra mim, pois eu, de alguma forma, comecei a entender o código inerente que circula entre nós, homens. Ali, sem ninguém me pedir, eu mantinha um segredo que julgava ser importante na proteção de meus tios. Percebi mais tarde que a família toda sabia das amantes, e inclusive que alguns tios tiveram filhos com estas mulheres que começaram a frequentar nossa casa com a alcunha de “primos”. Todos sabiam, mas ninguém problematizava. E aquilo começou a me causar um mal estar terrível, mas eu já estava numa de trabalhar o dia inteiro, estudar a noite e chegar bem tarde na terra longínqua de Santa Cruz (Zona Oeste do Rio, mesmo território em que esta tragédia aconteceu), e isso acabava me deixando mais insensível com aquela dinâmica autorizada. Mas nos finais de semana de almoço coletivo familiar, eu e meus tios sempre arrumávamos um canto pra falar delas, de forma muito preconceituosa. Queria questionar, mas me sentia acuado, pois uma das “verdades” que fomos educados era a de que deveríamos respeitar os mais velhos. Sem nenhum senso crítico, a gente crescia sem problematizar o que era respeito e o que era submissão.

Essa representação social da mulher foi crescendo comigo. Nas conversas de bares eu sei o que falam de vocês, mulheres. No banheiro da balada, eu sei o que pensam de vocês. Quem sou eu pra dizer que sou um homem feminista. Aprendi com uma mulher que não sou digno deste termo. Minha mente não funciona como uma mulher, e feminismo, assim como outros movimentos de mulheres, são frutos da forma de funcionamento de mulheres. E eu não sou mulher. Parece simplista dizer isso, mas é importante pra alertar alguns manos que, não satisfeitos com a estrutura patriarcal que nos oferece privilégios, proteção e autorização em sermos homens, ainda querem papel de protagonismo nos movimentos de mulheres também. Acho super da hora sermos parceiros, mas nosso lugar na verdade é onde as mulheres não conseguem sacar o machismo no seu mais alto grau de manifestação: nos churrascos da vida, no final da partida de futebol, no jogo de sueca… você sabe que eu sei da autorização que eu te dou e você me dá em olhar pra aquela mulher e julga-la com as palavras mais sórdidas do vocabulário humano. Você sabe que eu sei que quando elas chegam nos travestimos de educados, românticos, generosos, mas porra nenhuma, somos quem somos, e é preciso desconstruir essa porra! O dia a dia das nossas relações está cheio de atitudes que nos possibilitam e autorizam a sermos machistas (bem como racistas).

Tenho acompanhado a discussão sobre a produção do funk atual. As opiniões são bem diversas: de um lado uma galera que critica, que fala até que não é música. De outro lado, uma galera que defende, que apoia, mas que quando é tocado o tema “pornografia” no funk, sinto um certo cuidado em não “bater forte” nos irmãozinhos porque a gente tá ligado que, como nós, são a classe sofredora e são aliados do que a gente mais quer: subir na vida, dar condições melhores às nossas famílias. É preciso sermos mais realistas, manos. O que autoriza uma música como “Baile de Favela” estourar nas rádios e boates? O que autoriza uma música falar que a novinha – termo com cunho pedófilo – quica, rebola e senta? O que autoriza é a estrutura machista do nosso mundo! A mesma que autoriza 30 homens estuprarem uma menina e divulgar o ato em redes sociais, e ainda um deles, alertado pra retirar o conteúdo que ia dar merda, se sentir tranquilo e retrucar “Caiu na rede, pô, deixa rolar kkkk”.

Sou maior solidário na luta das irmãs, mas meu lugar de solidariedade é entre esses que, como Michel, se sentiu autorizado a colocar seu machismo em ato, vulnerabilizando ainda mais uma adolescente estuprada por 30 homens. Eu ando por estes espaços, eu sei do que estou falando. Há muito tempo recebo a autorização de ter amantes enquanto cobro a virgindade das minhas companheiras. Escrevo essas linhas com certa vergonha, mas imagino que vergonhoso deve ser a invasão em ser chamado de gostoso na rua, passar por alguém e ao olhar pra trás perceber que você está sendo escoltado, receber “piadas” sobre nosso decote. Você não consegue se ver nestas ações né? Elas sim!

Então, para além dessas linhas, é necessário ação! E não é na linha de frente da marcha das mulheres, porque a marcha é auto explicativa: é de mulheres! Mas posso ir onde o machismo se camufla, e sei dos caminhos. Hoje é feriado, e as distribuidoras de bebidas estão cheias de homens se entorpecendo. Lá estão eles, meu alvo! É preciso ter coragem, alguns são agressivos. Mas tem outros ambientes em que a mistura etílica não é compartilhada, dando um caráter mais tranquilo à natureza “macha”, as universidades, mas lá são muito espertos e intelectualizados. É possível um ambiente mais humilde, aqui perto de casa, as igrejas. Mas por lá, eles tem justificativas bíblicas que colocam o homem em uma posição de superioridade. Assim, eu percebo que a autorização está em todos os espaços, no imaginário construído pelos anúncios de cerveja, nos posters dos postos de gasolina. Está aqui dentro de mim. Cada um de nós, homens, de certa forma, fomos responsáveis pelo caso da menina que foi estuprada no dia 21/5 na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

 

*Vinicius Dias hoje não se sente confortável em dizer que é homem.

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