Cria da rua, a paulistana Mel Duarte vem se destacando por unir literatura, rap e poesia para expor sua interpretação de mundo a partir do olhar da mulher negra.
Por Kauê Vieira, do Hypeness
Filha de pai grafiteiro da primeira escola do stencil no Brasil, Mel cresceu no meio de manifestações e foi nutrida com passeios aos museus, alimentos essenciais para o desenvolvimento da arte de se comunicar.
“Preta:
Mulher bonita é que vai à luta!
Quem tem opinião própria e não se assusta
Quando a milésima pessoa aponta para o seu cabelo e ri dizendo que
“Ele está em pé”
E a ignorância dessa coitada não a permite ver…
Em pé, armado,
[…]
Pra mim é imponência
Porque cabelo de negro não é só resistente
É resistência.”
Desde o início da carreira, Mel acumula dois livros publicados, envolvimento fundamental no crescimento do Slam das Minas e claro, o orgulho de ser uma das responsáveis pela renovação da escrita literária do Brasil.
Como nunca é demais repetir que ‘nossos passos vêm de longe’, Mel bebeu muito na fonte do trabalho inspirador de outras mulheres negras inseridas na literatura, que desde os 8 anos de idade – quando começou a escrever, carrega consigo entre canetas e livros.
Gosto muito da Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, Esmeralda Ribeiro, Elizandra Souza, Maya Angelou, Carolina Maria de Jesus, Stela do Patrocínio
Mulheres negras que sempre que as leio vejo um tanto de mim, elas me provocam e me fazem refletir sobre a forma que quero ser compreendida”, explica em entrevista ao Hypeness.
As palavras sempre estiveram presentes em seu cotidiano. Como uma boa paulistana, Mel Duarte está inserida na cultura das ruas da capital paulista. A selva de pedras, diga-se, se caracteriza pelos muros que gritam e expressam os anseios e reivindicações de uma densidade populacional sem precedentes.
Neste escopo estão, obviamente, homens e mulheres negras, que de diferentes formas e maneiras, fazem valer conceitos de oralidade para jogar luz sobre assuntos necessários como o combate ao racismo.
“A oralidade nada mais é do que um ensinamento dos nossos ancestrais e infelizmente com o passar do tempo algo que foi perdido, para além da escrita, falar se faz importante uma vez que nossos antepassados foram tão silenciados- ainda mais as mulheres”, destaca.
Ao pensar a complexidade de uma metrópole com as nuances de São Paulo muitos, especialmente os que vêm de fora, podem se perguntar sobre a possibilidade de ser criativo no meio de uma multidão sempre com pressa.
Para Mel Duarte, é justamente o efeito de um aparente descontrole a força inspiradora para a criação de seus textos. Em sua obra, a autora busca dar espaço para palavras que, de alguma forma, sirvam de inspiração para quem historicamente sofreu com os apagamentos provocados pela vigência da escravidão. Então, nada mais peculiar do que as contradições paulistanas de cada dia.
Sou nascida e criada em São Paulo, então não tem como negar que o caos também inspira. A arte me persegue desde criança.
Com certeza, toda informação que recebi fez a diferença para que hoje eu me comunicasse como me comunico. Agora, é preciso aprender a lidar com ele para que se possa parar no meio da correria e ter tempo para produzir, isso sim é um desafio, mas as ideias estão sempre circulando na mente”, finaliza.
A poesia concreta de mulheres negras
Há muito tempo, mulheres negras e literatura são boas amigas. Ao puxar pela memória, certamente o nome da escritora Carolina Maria de Jesus salta aos olhos como um destes exemplos. Aliás, Carolina é a prova dos tais apagamentos. Mesmo com todo o seu talento, passou a maior parte da vida vivendo em uma favela na cidade de São Paulo, tendo sido reconhecida por sua obra nos estágios finais de vida.
Assim como outras representantes de sua geração, Mel Duarte pretende provocar uma reflexão. Por meio dos livros, rimas e poesias, a jovem vai realizando uma revolução em um sistema que por séculos impediu que mulheres negras ocupassem seus espaços de direito.
“Fomos impedidas de contar a nossa história durante séculos, logo hoje, ter espaço de fala é essencial para uma mulher negra.
Quando eu falo outras mulheres me escutam e também entendem a importância de suas falas, de contar suas trajetórias a partir de seus próprios pontos de vista e essa bagagem cultural que carregamos ficou há tempos esquecida, invisibilizada.
Logo, a poesia de uma mulher negra vai trazer, mesmo que nas entrelinhas, a vivência de seu povo que lá atrás pensou em um dia ter essa oportunidade”, reflete.
Como travar esta mudança sem o uso da palavra? Abramos aqui espaço para o pensamento de outro mago das letras, Sérgio Vaz. Por meio do Sarau da Coperifa, um marco pela difusão da literatura nas periferias de São Paulo, o escritor promove uma verdadeira revolução partindo da leitura.
“Hoje com alguns cabelos brancos, continuo a ler como criança e continuo dando corda na brincadeira da vida : futebol de várzea, cerveja gelada, recital de poesia, sinuca, teatro, cinema, show, samba, e por aí vou eu, esse romance inacabado. Tudo isso é necessário para que a literatura não caia na chatice e que o hábito da leitura não descambe para a arrogância. Ler não é chato, mas tem muito chato que lê, e o que é pior, quer sempre impor o que ele leu. Ficção?”, se questiona em texto publicado pela Fundação Palmares.
A perspectiva oferecida por Sérgio vai de encontro com as ideias de Mel Duarte. Atualmente, a escritora é membra do coletivo Poetas Ambulantes, ao lado de Luz Ribeiro, Carolina Peixoto, Thiago Peixoto, Mari Staphanato e Jefferson Santana. Juntos, eles realizam intervenções poéticas dentro dos transportes públicos paulistanos, convidando as pessoas a pensarem novas formas de lidar com espaços urbanos.
A palavra é a ferramenta mais potente que possuímos para a transformação social, ela está ali ao nosso alcance, traz conhecimento que é a fonte de tudo que podemos carregar e ninguém pode tirar de nós.
Ela tem a força de construir e destruir mundos, por isso é importante incentivar os jovens a ler e a escrever, afinal de contas sem leitura também não se tem vocabulário. Eu nunca imaginei que a palavra fosse me levar a tantos lugares, com ela eu vivo e influencio muitas pessoas ao meu redor. A gente admira os super-heróis das histórias em quadrinhos que possuem infinitos tipos de poderes e não nos atentamos no que temos aqui e agora conosco o tempo todo”, pontua.
Leia preta, leia
Historicamente, o hábito de ler não é um dos mais populares entre brasileiras e brasileiros. Por vários motivos. No caso de negras e negros, a literatura, em muitos momentos, esteve fora de alcance. Claro, tratamos aqui dos processos excludentes que permeiam a formação do país com mais pretas e pretos fora da África.
Apesar de longa, a estrada ganha novos caminhos. Seja com a amplificação do trabalho realizado por selos como o da Editora Malê – responsável por publicar livros de nomes como o da escritora mineira Cidinha da Silva. Ou pelo alcance da poesia de Conceição Evaristo, pleiteando com toda a justiça uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, negras e negros estão mais próximos dos livros.
No caso de Mel Duarte, isso se traduz com a participação de destaque na edição de 2016 da Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP). A presença de uma mulher negra como convidada em um local com predominância de pessoas brancas, é mais um tijolo em prol da diversidade.
“Poesia é literatura, a FLIP é um espaço predominantemente branco e elitista então ocupá-lo foi importante para que outras mulheres negras que também escrevem – independente do gênero – se enxergassem naquele lugar.
Eu cresci lendo livros de autores mortos, ser uma autora negra viva, muda a forma da nova geração se enxergar nesse campo de trabalho também, afinal de contas ninguém nos incentiva a crescer para sermos escritoras ou escritores.
Uma pena que ainda não se compreende que a palavra e a publicização da mesma significa marcar no tempo a história de um povo”, assinala.
Parafraseando Gilberto Gil, estaríamos diante de uma nova era? É inegável o ganho de espaço de discussões sobre protagonismo. Aliás, uma mulher negra, falando de seu trabalho, enquanto centro de uma matéria como esta, é a constatação perfeita. Porém, tratamos de mais de dois séculos de um dos regimes escravocratas mais cruéis que se tem notícia, por isso, é preciso sim estar atento e forte.
“Nos últimos 10 anos evoluímos MUITO nesse quesito, mas não sei se estamos mergulhando de cabeça. Isso pra mim só vai acontecer quando, de fato, esse tipo de discussão entrar nos lugares de base que são as escolas, principalmente públicas e estaduais. Para nós que já estamos no meio parece que todo mundo fala sobre, mas converso com muitos amigos professores que dão aula e fico triste quando eles me dizem que seus alunos negros mais retintos não se reconhecem como tais, que pra eles ser negro é algo ruim então falar essa palavra em sala de aula cabe como xingamento.
Quando nossas crianças negras entenderem que não há problema nenhum nisso, quando elas souberem da verdadeira história de seus antepassados e puderem ler isso nos livros, quando de fato todo conhecimento sobre nossos ancestrais puder ser colocado em pauta para que se gere uma discussão saudável nesse espaço, daí sim vou entender que o nosso país mergulhou de cabeça.
Gostou? Viste o site oficial de Mel Duarte e entre em contato com sua poesia. Afinal, só as palavras podem nos levar além.