O recreio é um espaço privilegiado para se estudar as crianças na escola, por estar mais distante das regras escolares e, portanto, dando mais liberdade para que as interações infantis aflorem. Assim, o recreio acaba sendo também uma oportunidade de se observar como as relações de gênero se constroem no espaço escolar.
Por Adriano Senkevics
Nessa rede de relações entre meninas e meninos que se expressa no intervalo das aulas, na qual, de modo geral, se faz menos presente os olhares e normas dos adultos, configurações das mais variadas são possíveis. O recreio torna-se palco para construções de masculinidades e feminilidades que fazem jus ao conceito de gênero: relacionais, múltiplas e associadas ao poder. Seguindo essa linha, o estudo de Tânia Cruz e Marília Carvalho (2006) procurou tecer uma etnografia do recreio escolar, descrevendo padrões de interações entre as crianças e o que eles nos diziam sobre as relações de gênero.
Na escola em que as autoras estudaram, estavam sendo relatados, pela equipe escolar, casos de “violência” no recreio. Instigadas por tal violência, Tânia Cruz foi a campo procurando enxergar que violência é essa e como ela seria praticada. Viu-se que era comum, entre meninos e meninas, interações nas quais se mesclavam agressividade com elementos lúdicos, visando à aproximação. A essa forma de se relacionar, elas cunharam a expressão “sociabilidade do conflito”.
Conforme vimos falando neste blog, está dada uma separação entre os sexos – diria mais: uma segregação de cunho sexista – que imputa aos meninos e meninas diferentes lugares, atividades e objetos na escola (assim como fora dela). Ora, já é consensual entre feministas e interessados/as em estudos de gênero que o binarismo está dado. Mulheres de um lado, homens do outro. Nomes, cores, brinquedos, profissões, roupas, expectativas etc, distintos. Tudo tem que ser diferente porque, afinal, eles vieram de Marte; elas, de Vênus.
A segregação sexual, na escola, se expressa por modos peculiares pelos quais meninos e meninas se aproximam. Simplesmente sentar junto com colegas do sexo oposto pode ser problemático, sobretudo entre crianças de menor idade – pois, na chamada “adolescência”, outros elementos entram em jogo na constituição do “ficar” e do namoro. Mas, entre crianças do Ensino Fundamental I, prepondera a noção da homossociabilidade, isto é, interações restritas ou preferidas entre colegas do mesmo sexo.
Assim, o que Cruz e Carvalho (2006) notaram foi que havia um distanciamento entre os sexos nos momentos amistosos (nos quais relações positivas eram construídas entre os pares) e uma aproximação proposital por meio de ações conflituosas, “que pareciam, muitas vezes, ser a única forma possível de estar juntos” (p. 121). Essa aproximação conflituosa, segundo as autoras, se constitui por três principais formas: (1) atividades turbulentas (correias, pega-pegas, perseguições) que polarizam meninos e meninas; (2) episódios de invasão (quando crianças de um sexo invadiam os espaços e brincadeiras das crianças do sexo oposto); (3) provocações verbais ou físicas, incluindo os xingamentos proferidos pelos meninos e, em resposta, os tapas das garotas contra eles.
Quem nunca foi numa escola primária e viu meninas correndo para bater em meninos? Ou o grupo dos meninos interferindo negativamente na brincadeira de pular corda praticada por elas? Ou algumas meninas atravessando o campo de futebol para atrapalhar o jogo deles? Em suma, são situações rotineiras que apontam para os limites de interações entre os sexos. Denotam, por um lado, as tais separações e como se constituem dois universos distintamente caracterizados e até mesmo polarizados. Por outro lado, apontam para as possibilidades de intersecção. Eles e elas, afinal, interagem. Mas não de qualquer forma. O conflito – e alguma dose de agressividade – torna-se constitutivo.
Vale ressaltar que o caráter agressivo que a interação conflituosa possa apresentar não é necessariamente violento. Violência, pois, depende de pelo menos três referenciais: o agente, a vítima e o observador. Naquilo que parece violento aos nossos olhos (adultos) pode se descortinar outras possibilidades, nas quais o lúdico predomina. Não que não apontem para problemas amplos da sociedade – caso contrário, o dito bullying não seria objeto de preocupação. Só que, em defesa das crianças, os sentidos que preenchem tais atividades talvez sejam outros, seja para quem agride, seja para quem é agredido.
Violenta ou não, cabe ainda refletir sobre a configuração dualista que coloca meninas e meninos em lados opostos. Bem, esse é um dos temas mais complexos dos estudos de gênero. Barrie Thorne (1993), de quem já falamos outras vezes neste blog, em sua célebre obra defende que tais conflitos, ainda que lúdicos, reforçam antagonismo entre os gêneros. E, aqui, a autora se refere tanto às oposições entre os sexos (meninas e meninos), quanto aos sentidos de gênero (masculinidades e feminilidades). Portanto, não basta juntar meninas e meninos em um mesmo espaço ou brincadeira – a chamada coeducação – porque as oposições podem persistir. A título de exemplo, mesmo juntos, pacificamente, brincando de casinha, ainda vai existir o papel do pai e da mãe, bem delimitados.
Diluir essas fronteiras é um esforço constante e a meta última da conhecida teoria queer. Começa nos modelos, exemplos, padrões. Passa pela escola, mídia, trabalho, família. Depende de pais, mães, educadores, da sociedade como um todo. É um processo pelo qual lutamos tanto, um sonho que é tributário do feminismo, e que enfrenta inúmeras dificuldades. Há, sem dúvida, exemplos para nos espelharmos. O mais famoso deles é a instituição de Educação Infantil, na Suécia, chamada Egalia. Lá, as distinções de gênero tendem a ser mínimas: um pronome neutro se refere às crianças (similar ao “menines”), elas vestem roupas idênticas, brincam das mesmas brincadeiras. Um paraíso queer, diríamos. Mas, saiu dali…
Vê-se, para concluir, que as fronteiras tidas como certas têm efeitos reais nas interações entre meninas e meninos, discutidas neste texto no âmbito do recreio. Longe de ser um dado fixo, natural ou essencial, baseia-se numa referência sexista que se retroalimenta na sociedade. É um lugar comum. Enfrentar tais constrições é um passo essencial para relações menos conflituosas e mais igualitárias. Entre crianças ou entre adultos. Na escola ou fora dela.
Fonte: Ensaios de Gênero