A defesa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) recorreu ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) e ao STF (Supremo Tribunal Federal) para anular uma decisão judicial que o obrigou a indenizar em R$ 10 mil a jornalista Bianca Santana, ex-colunista de Ecoa, por ter atribuído a ela a circulação de uma notícia falsa.
Ambas as apelações foram protocoladas na última terça-feira (14). No recurso extraordinário encaminhado ao STF, a defesa do presidente, coordenada pela advogada Karina Kufa, argumenta que a atual sentença ignora “as sustentações a respeito da precedência da liberdade de expressão, principalmente quando atrelada a mero erro material que se viu a fala objeto da presente controvérsia”.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a advogada Karina Kufa afirmou ao UOL que o objetivo dos recursos é indicar “pontos conflitantes com a legislação nos julgamentos realizados neste caso, em especial a violação à liberdade de expressão e o desrespeito ao livre exercício do contraditório, o que está sendo questionado no STJ e no STF, argumentos que, se acatados, afastarão qualquer necessidade de pagamento à jornalista”.
A tese defendida por Kufa é que há um conflito entre dois princípios constitucionais, o da liberdade de expressão, exercida pelo presidente, e o direito à intimidade e a honra, por parte de Bianca.
Para a defesa de Bolsonaro, “a liberdade de expressão deve encontrar absoluta guarida pelos representantes do Poder político, seja no escorço executivo, legislativo ou judiciário”. No caso do presidente, esse direito deve ser assegurado para que ele exerça seu cargo, continua Kufa.
“Percebe-se o aviltamento absoluto da liberdade de expressão do Presidente da República e, consequentemente, de chefe de estado eleito por meio do sufrágio universal. Por essa razão, a liberdade de expressão possui natureza diversa, vez que a ele [Jair Bolsonaro] o direito referido recai não apenas como uma prerrogativa enquanto detentor de natureza humana, mas também como um dever imposto pelo cargo eletivo que ocupa”, escreve ela.
“O Recorrente [Jair Bolsonaro] deve sempre manifestar aos seus eleitores e à sociedade brasileira como um todo seus posicionamentos políticos, éticos e comportamentais. O dever à transparência tange toda sua atividade administrativa que é, em suma, atividade de natureza política e, por isso, permeia todos os elementos da sociedade enquanto agremiação coletiva da espécie”
Karina Kufa, advogada do presidente Jair Bolsonaro
Bianca Santana moveu uma ação contra Bolsonaro após ele acusá-la injustamente de propagar fake news. As declarações foram feitas em uma live. Na época, a jornalista mantinha uma coluna em Ecoa. Em 19 de agosto, o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) confirmou a condenação por danos morais dada na primeira instância. Na decisão, o órgão salientou que “dizer em rede nacional que determinada jornalista divulga fake news é tirar dela o bem mais valioso ao exercício de sua profissão: a credibilidade”.
Já no recurso especial ao STJ, a defesa de Bolsonaro cita que a jornalista publicou uma reportagem no UOL desmentindo as declarações do presidente e argumentou que tal conteúdo “certamente tem maior alcance a nível de público do que as transmissões ao vivo feitas pelo recorrente, o qual em média tem um público de 50 mil pessoas”.
Kufa argumenta que “mera pesquisa no Google permitiria vislumbrar a inexistência de resultados em que [Bianca] tem a sua reputação pessoal ou profissional questionada em razão da fala [do presidente]”.
A advogada de defesa acrescenta ainda que o vídeo de retratação do presidente feito dois meses após as declarações atingiu um número suficientemente relevante de pessoas, de modo a compensar o que chamou de “equívoco cometido”.
Ao UOL, a advogada da jornalista, Sheila de Carvalho, criticou a abordagem da defesa.
“Agora adotaram no recurso uma linha que ele [presidente] está sendo perseguido pela jornalista e que a jornalista está cerceando a liberdade de expressão dele, o que não é verdade. Se ele atribui fato calunioso a uma jornalista, ele está incorrendo em erro e isso não tem relação com liberdade de expressão”
Sheila de Carvalho, advogada
O UOL aciona a Secretaria Especial de Comunicação Social do Planalto desde sexta-feira (17) para comentar a decisão do presidente, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.
Entenda
Após ser acusada por Bolsonaro de propagar notícias falsas em 28 de maio durante uma live, Bianca Santana passou a receber ameaças.
Na época, Bolsonaro atribuiu a ela uma matéria que ela não escreveu sobre o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) ter barrado uma propaganda eleitoral de Fernando Haddad (PT) durante a corrida presidencial de 2018. Segundo Bolsonaro, a peça o acusava de ter votado contra a LBI (Lei Brasileira de Inclusão), voltada a pessoas com deficiência.
Bianca havia publicado, sim, um texto citando relações entre pessoas próximas a Bolsonaro e os acusados do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, no Rio de Janeiro. Na coluna, a jornalista argumentou que a federalização do caso interessava ao presidente, que queria se aproveitar do cargo para proteger os mandantes do crime. A coluna foi publicada no UOL.
Na ação movida contra Bolsonaro, Bianca Santana pediu indenização no valor de R$ 50 mil. Segundo a Justiça, o pedido público de desculpas, feito pelo presidente dois meses depois, foi suficiente para reduzir a indenização para R$ 10 mil.
Os advogados de Bianca argumentaram que a menção ao seu nome não foi “meramente um erro”, mas o juiz César Augusto Vieira Macedo, do TJ-SP, entendeu que a quantia determinada era “razoável e suficiente à compensação, estando ainda em conformidade com a mais recente jurisprudência”.
Além dos danos morais, Bolsonaro foi condenado a pagar 80% das custas e das despesas processuais, além dos honorários advocatícios de 20% do valor da causa de R$ 50 mil.
No processo contra o presidente, Bianca teve auxílio da Coalizão Negra por Direitos e demais organizações, como a Artigo 19. Em entrevista recente ao UOL, Bianca comemorou a decisão da condenação em segunda instância como “vitória coletiva”. “Me parece uma vitória coletiva importante por criar jurisprudência e reafirmar o óbvio: que o presidente não pode violar os direitos de jornalistas, o direito das pessoas”, disse.