O núcleo duro do bolsonarismo

“E a memória de tudo desmanchará suas dunas desertas,
e em navios novos homens eternos navegarão”.
Cecília Meireles, poema Anunciação

O general, a juíza e o desembargador

Um general quatro estrelas explicou a formação do povo brasileiro através do falacioso mito da democracia racial: a narrativa da miscigenação das raças originárias – indígena, branco, negro. Disse que “herdou a cultura dos privilégios(pensão vitalícia para as filhas solteiras?) dos ibéricos, a indolência(frente à gestão genocida do general-de-divisão no Ministério da Saúde?)dos indígenas, a malandragem (para elidir o golpismo do comandante-em-chefe, em sete setembro?) dos africanos”. Nas entrelinhas, com tacanhez, revelou como a história do Brasil é (des)aprendida nas academias militares para pregar uma inexistente harmonia e sufocar a ideia de conflito. Para Florestan Fernandes, ao reverso, o legado do período colonial-escravista vigente por mais de três séculos não foi a mestiçagem para o molde da nacionalidade, mas uma brutal desigualdade étnico-racial. Reatualizada na lei colonialista sobre o “marco temporal” e testemunhada dia a dia no cinturão das cidades. A escravidão dos negros e a expropriação de terras indígenas forjaram, a ferro e fogo, a árdua brasilidade.

Uma juíza federal, em artigo na imprensa, posicionou-se contrária à adoção de cotas para os afrodescendentes nas universidades, argumentando: “Para nós, mulheres, não houve necessidade de estipular cotas. Bastou a igualdade de condições com os homens para que hoje fôssemos maioria em todos os cursos universitários do país”. Nós, quem?, questionou Sueli Carneiro (Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil, Ed. Selo Negro): “A utilização do pronome ‘nós’ faz supor que as mulheres são um grupo homogêneo que compartilha igualitariamente das oportunidades sociais, em especial no que concerne ao acesso à educação… Dados do Ministério da Educação, em 2000, mostram que apenas 2,2% do contingente de formandos nas universidades eram negros, enquanto os brancos representaram 80%”. A magistrada também não considerou o fato de os homens entrarem mais cedo do que as mulheres no mercado de trabalho, com prejuízos para a permanência no sistema educacional. Não impede que as mulheres precisem do plus de cinco anos de escolaridade para equiparar a chance dos homens em obter um emprego no setor formal.

Não à toa, políticas de ações afirmativas acontecem numa enorme diversidade de países, segundo levantamento da fundadora do Geledés Instituto da Mulher Negra: Estados Unidos, Inglaterra, Canadá (indígenas, mulheres, negros), Índia (medidas especiais de promoção dos dalits, os intocáveis), Colômbia (indígenas), Austrália, Nova Zelândia, Malásia (grupo étnico majoritário, bumiputra), Rússia (4% de vagas na Universidade de Moscou para habitantes da Sibéria), Israel (falashas, judeus de origem etíope), Alemanha (mulheres), Nigéria (mulheres), Sri Lanka, África do Sul, Noruega, Bélgica (imigrantes), Líbano (participação política das diferentes seitas religiosas), China e Peru. A consolidação dos valores republicanos e democráticos é indissociável da efetivação de uma igualdade substantiva, que elimine discriminações precedentes para que a equanimidade abstrata tenha uma correspondência concreta na realidade social. Determinadas diferenças cobram um tratamento não igual, sobretudo no campo dos direitos sociais. Ignorar as disparidades é um ato de cumplicidade com as injustiças. Focá-las é um ato libertador dos antigos grilhões.

Um desembargador, por sua vez, veio a público fazer o indecoroso autoelogio do Judiciário: “Nosso diferencial (ético? intelectual? de raça?) sempre esteve no valor da nossa gente’ (quem não?)… numa das instituições de maior reconhecimento”. Justificou a penca interminável de prebentas indecentes na linguagem calvinista que converteu a corporação em uma casta de eleitos. Subentendeu os predicados. O dilema esteve na opção entre pecar, por hipocrisia, para enganar o público sem que este se desse conta ou, por cinismo, permitindo que a plebe percebesse a burla. Continua, o Excelentíssimo: “É precioso (para quem?) que a sociedade reflita sobre isso (o quê?)antes de criticar medidas (quais?) que visem promover aos quadros de servidores e de magistrados o mínimo possível (quanto?) para manter um padrão (marajá?)de valorização, ao menos similar ao executado em outros estados (onde?) da federação (concurso sobre que jurisdição suga mais as tetas estatais?). Não se tem qualidade (funcional, com férias de sessenta dias?) com desprezo (pela jurisprudência pró-corporativa?)”. As lacunas denunciam a desfaçatez. Vergonha, dotô.

Como contemplar os requisitos mínimos da igualdade entre os cidadãos para construir uma verdadeira República, com tamanhas distorções semânticas do real

Ao confrontar razão tão cínica, Jessé Souza (A Tolice da Inteligência Brasileira, Ed. Leya) disparou: “Indivíduos e classes sociais inteiras têm que, efetivamente, ser feitos de tolos’ para que a reprodução de privilégios flagrantemente injustos seja eternizada”. A rapina de curto prazo é a marca registrada das elites nativas, manipuladoras por vocação. Não é um projeto nacional.

A construção da subjetividade neoliberal

O general, a juíza e o desembargador, na alusão que dispensa nomes para evitar as constrangedoras singularizações, desempenham – para efeito de raciocínio, aqui – o papel de “tipos ideais” weberianos como expoentes do conservadorismo do núcleo duro da classe média brasileira, isto é, do bolsonarismo. Por ignorância ou má-fé, a farda e as togas dão passos atrás na direção do laissez-fairemoral e econômico, nenhum à frente para a implementação de políticas igualitaristas que coíbam privilégios antirrepublicanos. Não exprimem idiossincrasias. Antes, compartilham características atávicas de classe social:

a) A visão acrítica sobre um passado mítico que equacionou os conflitos, superou o colonialismo (racismo) e a luta de classes. Como se o pátio entre a Casa Grande e a Senzala tivesse sublimado a dialética da dominação vs. subordinação com uma síntese superior;

b) A visão acrítica da meritocracia, fruto do esforço pessoal, para desqualificar dispositivos de correção das condições precárias de nascimento e a secular tradição do patriarcado (sexismo). Como se as clivagens étnicas, sociais e de gênero tivessem se perdido no tempo;

c) A visão acrítica sobre o patrimonialismo praticado pela classe média via categorias profissionais que parasitam o Estado. Como se a Constituição de 1988 tivesse aprovado o butim para ostentar “o valor de nossa gente” com o consumo de luxo e viagens a Miami.

“A classe média brasileira herda o abuso e o sadismo de seus avós… sequer percebe a escravidão como a nossa semente social mais importante. A balela do patrimonialismo, e da corrupção como se fosse atributo exclusivo do Estado e da política, relega ao esquecimento e torna supérflua a herança maior”, volta à carga Jessé Souza (A Classe Média no Espelho, Ed. Estação Brasil). A socialização socioafetiva dos tipos ideais destacados obedece aos mesmos padrões familiares, às mesmas ilusões histórico-ideológicas, às mesmas alienações consumistas do que seja uma “vida boa” ou a “felicidade”. Questões que vão além do compartilhamento dos níveis de renda e consumo, pois implicam uma percepção comum sobre a relação do indivíduo com a sociedade.

Isso presta-se de estofo à subjetividade neoliberal, para a qual o público é mera extensão do privado. O individualismo é superior ao comunitarismo. O inferno são os outros. Privilégios são direitos outorgados pelo mérito. O Estado pertence aos espertos. Adaptar-se às regras do jogo é melhor que rebelar-se. O conformismo é uma virtude. O pensamento crítico é sinal de um desajuste à lógica produtivista, acumulativista. Ser capitalista é pop. A considerar a perspectiva de Marx, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), falta nessas máximas o conceito desalienante da “atividade livre e consciente”, a experiência do “ser genérico”. Falta a genericidade (com perdão do neologismo)para elevar o sujeito até uma existência autenticamente humana, não guiada no trabalho ou no amor pelos vetores mercantilistas.

A cosmovisão em que tudo é permitido, não porque Deus está morto, mas porque deve tirar-se proveito de posições de relevo na engrenagem socioeconômica, corresponde ao modus operandi dominante no capitalismo que converte corpo, mente e sentimento das personas em elementos estranhos para elas próprias. Estranhamento aguçado na despótica disciplina fabril (nunca dantes), que inspirou a composição Três Apitos, de Noel Rosa, o poeta de Vila Isabel, na emergente industrialização do Rio de Janeiro (1933): “Eu me lembro de você / Quando o apito da fábrica de tecidos /Vem ferir meus ouvidos /Você que atende ao apito da chaminé de barro / Por que não atende ao grito / Tão aflito / Da buzina do meu carro?”.

As sonegações fiscais, os penduricalhos sem incidência de impostos para contornar o teto salarial do funcionalismo, o descaso com as prerrogativas trabalhistas e previdenciárias dos assalariados, o desrespeito ao equilíbrio ecológico causado pela devastação ambiental e a destruição da biodiversidade a título de progresso, o tratamento desigual dado pelo aparelho de Justiça aos filhos de Lula na comparação com os filhos no clã miliciano de Bolsonaro – são peças espalhadas do mosaico que reduz a humanidade a um caleidoscópio, na aparência, sem conexão. A exemplo dos megaempresários, proprietários dos conglomerados de comunicação, banqueiros, rentistas, ruralistas ligados ao agronegócio – seus subsidiários na classe média estão impossibilitados de conferir significado holístico aos fatos empíricos.

Para compreender os fatos empíricos é necessário inserí-los no processo histórico, em uma “totalidade significativa”, o que aterroriza os donos e os inquilinos de aluguel do poder. Por incapacidade cognitiva e mecanismo de defesa, a burguesia e osestamentos burocráticos com extração nas camadas intermediárias, se escutam o galo cantar, não apontam onde vem o canto. Reprimem a verdade – nua – por conveniência, enquanto a mentira passeia pelas redes sociais vestida com trajes da verdade e ares de fake news. A consciência possível dos poderosos está bloqueada para que não vejam o festival de violências, falsidades, imoralidades e mentiras ocultas na bagagem. Não podem olhar-se no espelho. Exceção feita aos heróicos trânsfugas que adotaram um novo ponto de vista de classe (Engels, Lukács).

A classe média e o leito de Procusto

A extrema-direita foi o desaguadouro previsível do antipetismo cevado, com apoio da mídia comercial, nos segmentos que permitiram os trâmites inconstitucionais de lesa-pátria, com ataques à Petrobrás e às empresas nacionais de engenharia que disputavam o mercado internacional com as rivais norte-americanas, em favor dos interesses de potências estrangeiras. Já o neoliberalismo foi a cultura permissiva que deixou impunes os membros da operação judicial que espetacularizou a miríade de ilegalidades processuais, vazamentos do que corria sob sigilo, delações premiadas sob vara e o lawfaredo candidato que liderava as pesquisas para as eleições de 2018, pavimentando o caminho do fascismo. “Tive grande desapontamento com os procedimentos do juiz Moro e do Ministério Público”, virou um mantra religioso repetido à exaustão por lavajatistas arrependidos. Quae sera tamen.

O asco à população batalhadora e o estigma lançado contra os lutadores sociais que se perfilam junto às “classes perigosas” – para combater a opressão e exploração – seguem incólumes na petite bourgeoisie. Idem, para a aversão extremista ao projeto político com horizonte no humanismo socialista, encarnado no Partido dos Trabalhadores (PT) e na esquerda em geral. Raras vezes se localizou no mapa-múndi uma elite com tanto desprezo e ódio pelos pobres. O genocídio capitaneado pelo despresidente, em curso, é a continuação do eugenismo aplicado desde o século XIX, nessa colônia das pseudo modernizações que aprofundam o atraso. As constantes chacinas nas comunidades de periferia, pelas temidas polícias militarizadas, traduzem em mortes o desejo abrigado no topo da pirâmide social. Como na mitologia, os que fogem ao tamanho do leito de Procusto têm as pernas cortadas, ou esticadas, para satisfazer o cruel figurino da rediviva intolerância da classe dirigente.

Não surpreende que em uma demonstração de Jet Skis, no lago artificial de um condomínio fechado, o patrocinador do evento proclamasse ao microfone a distopia ariana: “Que maravilha, só a elite!”. Estavam ausentes os desempregados, os invisíveis, os deploráveis, a rapa do tacho, a ralé que sob outra forma perpetua a sociedade escravocrata do passado. Se acaso procurasse, encontraria-os no pelourinho da fome, nas filas pelo direito de sofrer a mais-valia, no castigo da informalidade dos camelódromos, nas motociatas para entregas a domicílio em troca de parca comissão, nos presídios de tonalidades escuras por delitos sem atentado à vida que aguardam julgamento, nos botequins do cais do porto, nas esquinas de prostituição das filhas do precariado, nos corredores do SUS, na lista em que constam os milhares de óbitos na pandemia do coronavírus, nas incontáveis favelas senzalescas, no movimento dos sem-terra, dos sem-teto, nas piedosas orações do padre Júlio Lancellotti.

Valem as perguntas do operário leitor, nos versos de Bertolt Brecht: “Quem construiu a Tebas das sete portas? / Nos livros estão os nomes dos reis. / Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra? /A Grande Roma / Está cheia de arcos de triunfo. Quem os levantou? / Quem cozinhou o banquete da vitória? /Felipe de Espanha chorou, quando a Armada / Se afundou. Não chorou mais ninguém?” A classe média, que repudia o trabalho braçal, embora reclame por braços baratos, oscila entre manter-se fiel ao fascista suburbano e reivindicar um mordomo (com apelo eleitoral) de maneiras refinadas no Palácio do Planalto. Não questiona as políticas de exclusão e marginalização dos neoescravizados. Não se indigna com o entreguismo de empresas públicas estratégicas para o futuro da nação. Em silêncio, acata os preços majorados da gasolina e importados. Só não quer grosserias à mesa de refeições. É o que Gramsci denomina de “intuição programática”. – Que faro de merda!

Luiz Marques é professor de Ciência Política da UFRGS, ex-Secretário de Estado / RS (Governo Olívio Dutra)

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