Mercado de trabalho combina mazelas seculares aos males da modernidade

Sem o protagonismo de outrora dos sindicatos e com atuação hesitante do governo, trabalhadores se movimentam em fenômenos variados

É emblemático que, 139 anos depois da repressão violenta à manifestação por redução de jornada em Chicago, nos Estados Unidos, origem do Dia do Trabalhador, brasileiros tenham ido às ruas no 1º de Maio contra o cotidiano de seis dias de labuta, um de folga. Os protestos contra a escala 6 por 1 marcaram o feriado em diferentes cidades, de São Paulo e Rio de Janeiro a Salvador e Belo Horizonte, de Fortaleza e Florianópolis a Recife e Porto Alegre. Não é trivial, ainda que sem o tamanho dos atos de outrora. O movimento Vida Além do Trabalho emergiu do desabafo em rede social de um jovem balconista de farmácia (o hoje vereador Rick Azevedo, PSOL-RJ), tomou forma num grupo de mensagens instantâneas, transbordou para o mundo real, a ponto de uma deputada (Erika Hilton, PSOL-SP) apresentar uma PEC no Congresso Nacional e o presidente da República tratar do assunto no pronunciamento em cadeia nacional.

Lula evocou anteontem o equilíbrio entre vida profissional e bem-estar de trabalhadores ao endossar o debate sobre a instituição da jornada 5 por 2. Não é muito, mas configura mudança de postura do governo. Em fins de 2024, proposta em ebulição, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, se apressou em (tentar) interditar a discussão alegando que “jornada de trabalho deveria ser tratada em convenções e acordos coletivos”. Quase um século e meio depois da mobilização que desaguou na carga horária-padrão de oito horas nos Estados Unidos, brasileiros — empregados, sobretudo, nos setores de comércio e serviços — se batem por duas folgas semanais, em nome da saúde física, mental, familiar.

Ato pelo Dia do Trabalhador em São Paulo — Foto: Maria Isabel Oliveira / Agência O Globo / 01/05/2025

São homens e mulheres que já não trabalham para viver, mas vivem para trabalhar, enquanto representantes de empregadores, em pleno século XXI, atacam a necessária mudança, como antecessores fizeram nos anos 1900 contra o décimo terceiro salário. E, antes disso, resistiram ao fim da escravidão — até hoje não integralmente abolida. Ainda outro dia, na primeira quinzena de abril, operação de Ministério do Trabalho (MTE), Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal resgatou, em Planura (MG), dois trabalhadores domésticos vítimas, havia anos, de abuso sexual, jornada exaustiva, ofício sem salário nem registro, sem férias nem descanso. Um deles, revelou o jornalista Leonardo Sakamoto, da organização Repórter Brasil, foi tatuado com as iniciais do algoz, marca de propriedade tal qual as aplicadas por senhores do Brasil Colônia em africanos escravizados.

O mercado de trabalho no país combina mazelas seculares aos males da modernidade. Apenas no ano passado, o MTE realizou 1.035 ações de fiscalização e libertou 2.004 pessoas em situação análoga à escravidão. No âmbito doméstico, foram 22 operações, 19 resgatados. A informalidade grassa. No primeiro trimestre, segundo o IBGE, alcançava 38% dos brasileiros ocupados. São 38,9 milhões de empregados sem carteira assinada e autônomos ou empregadores sem CNPJ. Ganham menos que os formalizados e estão apartados de direitos trabalhistas e benefícios previdenciários.

Desde a reforma promulgada no governo de Michel Temer, em 2017, os sindicatos perderam força, e a informalidade aumentou. Estudo da pesquisadora Nikita Kohli, que faz doutorado na Universidade Duke, nos Estados Unidos, mostrou que tanto os salários quanto a contratação com carteira recuaram depois das mudanças. Ela usou dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad-IBGE) de 2012 a 2021. Descobriu que a remuneração do emprego formal caiu 0,9%, e as admissões 2,5%. Ao mesmo tempo, o número de trabalhadores informais aumentou 6,7%.

A reforma da Previdência de 2019, que aumentou tanto a idade mínima quanto o tempo de contribuição para aposentadoria, tampouco aumentou a atratividade do trabalho formal. Crescentemente, jovens se ocupam sem qualquer proteção legal, na expectativa de maior renda líquida e ampla liberdade no uso do tempo. Na prática, trabalham mais horas; tornam-se reféns de plataformas digitais, detentoras da demanda; não necessariamente ganham mais. É verdade que o emprego com carteira tem aumentado e o desemprego diminuído no país. O Caged-MTE contabilizou 71,6 mil vagas formais em março; e 654 mil no primeiro trimestre. A taxa de desocupação nos três primeiros meses deste ano ficou em 7%, segundo o IBGE, a menor para o período desde 2012. O rendimento real habitual, de R$ 3.410, também bateu recorde.

Há números que agradam e conjuntura que oprime. Sem o protagonismo de outrora dos sindicatos e com atuação hesitante do governo, trabalhadores se movimentam organicamente em fenômenos variados: da explosão do empreendedorismo precário às paralisações de entregadores por remuneração e condições de trabalho; do fim da escala 6 por 1 à ocupação por meios digitais. O mercado de trabalho vive inédita transformação. A luz no fim do túnel ainda não é visível.

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