Meritocracia não existe

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Maioria nas universidades, negros demandam oportunidades iguais

Por Thiago Amparo, da Folha de São Paulo

Thiago Amparo (Foto: Arquivo Pessoal)

Imagine que exista uma reitora negra de uma universidade privada de elite no Brasil e que esta decida reservar 43% das vagas para estudantes negros, muitos deles do seu círculo social mais próximo. Injusto?

Pois bem, a Universidade Harvard faz justamente isso, mas com estudantes brancos. Quando racializado, o debate sobre mérito expõe suas falácias.

Em artigo publicado pela Universidade Duke em setembro deste ano, um trio de economistas americanos provou que, entre 2009 e 2014, 43% dos alunos brancos admitidos em Harvard eram ALDCs —sigla em inglês para designar atletas, legados (filhos de ex-alunos), indicados pelo reitor e filhos de professores e funcionários da universidade.

Se tivessem sido considerados pelo mesmo processo aplicado aos demais, três quartos destes não teriam sido aceitos. Estudantes negros, asiáticos e hispânicos figuram entre 16% dos alunos ALDCs.

No Brasil, como devemos ler o dado, publicado na última quarta-feira (13), de que pretos e pardos são hoje maioria no ensino público superior?

Conquista histórica dos movimentos negros no Brasil, este dado é motivo de celebração, mas não de aquietação. Menor mobilidade social de não brancos comparada a de brancos ainda persiste, como mostram os dados do GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Precarização do ensino público prejudica todos os alunos, mas em especial jovens negros que dependem de bolsas e outros auxílios para se manterem. Racismo ainda permite que haja fraudes no sistema de cotas por alunos brancos, em especial em cursos mais concorridos como de medicina e direito.

Outra ameaça à negritude nas universidades é a perversidade da ideologia meritocrática como prática excludente.

Palavra sacrossanta, meritocracia parece intuitivamente atraente. É irônico notar que o próprio termo foi criado como uma sátira pelo sociólogo britânico Michael Young em 1958. Na palavra “meritocracia”, há algo de anti-aristocrático: pessoas deveriam merecer as posições sociais que ocupam por seu esforço e talento, e não por um direito sagrado de nascença ou por pertencer à certa classe social. Ideal de meritocracia assim definido não existe.

Em novo livro “The Meritrocracy Trap” (ainda sem versão no Brasil), o professor de Yale Daniel Markovits argumenta que a forma como praticamos meritocracia ameaça a própria democracia.

Por um lado, sobrecarrega-se a elite com altos gastos em educação privada para permitir que seus filhos continuem a ter acesso aos postos de trabalho reservados para um clube fechado de ex-alunos de escolas de elite.

Dados do IBGE de 2018 mostram que o grupo mais rico de famílias brasileiras gasta dezoito vezes mais com educação do que o grupo mais pobre (R$ 27.234/mês). Gasta-se fortunas para manter segregada a educação dos filhos do topo, do colégio bilíngue ao MBA na Ivy League, perdendo no caminho outros que desta educação poderiam se melhor beneficiar se tivessem os recursos para tanto.

Por outro lado, meritocracia como a praticamos isola a classe média, argumenta Markovits: “Trabalhadores super qualificados deslocaram do centro da produção econômica trabalhadores de classe média e com treinamento mediano.”

Classe média —o que no Brasil significa ganhar R$ 1.800 por mês para cada pessoa do domicílio— sonha em vencer na vida por meio do esforço, mas a própria estrutura meritocrática uberiza a educação da classe média, precarizando-a em universidades privadas de pouca qualidade, independentemente do mérito de seus alunos.

Aos mais pobres, é reservado viver em indicadores sociais semelhantes ao da Somália enquanto seu vizinho rico vive na Dinamarca, como mostrou o Mapa da Desigualdade deste ano sobre a cidade de São Paulo.

Presença negra em universidades de ponta incomoda. Incomoda porque sinaliza a potencialidade de negros e negras ocuparem espaços de poder num país onde poder lhes é sistematicamente negado. Incomoda também porque sinaliza que regras jurídicas podem também promover mudanças estruturais.

Ironicamente, estamos acostumados a ver como regras jurídicas excluem. Professora da Universidade Columbia, Katharina Pistor relata no recente livro “The Code of Capital: How the Law Creates Wealth and Inequality” como regras contratuais, de propriedade, falência e outras protegem capital, ajudando a criar tanto riqueza quanto desigualdade.

Do engessamento da riqueza em terras no século 19 no fim da escravidão até o atual processo de segregação racial nas cidades, pode-se ver que também por aqui regras jurídicas também têm seu latifúndio de culpa.

Substitua o novembrismo do mês da Consciência Negra por um debate sério sobre reparações por três séculos de escravidão —reparações por meio de ações afirmativas que concedam oportunidades iguais. Sem este debate, estamos a falar de aristocracia, não mérito.

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