Consciência negra

Senso comum se iludiu com a mestiçagem

Por Nei Lopes, na Folha de São Paulo

O escritor e músico Nei Lopes – Felipe Varanda/Folhapress

O escravismo no Brasil e o colonialismo na África usaram, como estratégia de dominação, fragmentar as populações negras, tanto por etnias e linhagens quanto por categorias sociais. “Dividir para dominar” era a regra. Que, embora verbalizada no sentido contrário, ecoou na atualidade brasileira em setembro último, quando o titular do Ministério da Educação afirmou que no Brasil “não existe povo negro”, e sim “brasileiros de pele escura”.

A moderna classificação dos afro-brasileiros como “negros” —mesmo subdivididos em “pretos e pardos”— é uma conquista política e um avanço estatístico: a vasta terminologia antes usada dificultava o mapeamento científico do lugar ocupado pelo segmento afro no conjunto da população, em prejuízo do atendimento às suas necessidades especificas.

Nos mais de três séculos de escravismo, a presença africana no Brasil foi ampla e importante. Até que, inviabilizado o sistema, o Império o aboliu; não sem antes promulgar uma lei, em 1850, negando a ex-escravizados o direito à posse e à propriedade de terras e alargando portas à imigração de colonos vindos do exterior. Assim, com um ato abolicionista vazio, desacompanhado de medidas complementares em favor dos emancipados, reforçou-se a exclusão.

O senso comum negou essa realidade, iludido pelo argumento da mestiçagem, com o qual ainda se busca provar que no país não existe racismo e, sim, casos eventuais de preconceito. Mas a mestiçagem, conforme o saudoso Clóvis Moura, sociólogo afromestiço, é um fato biológico que não se reflete no campo politico da democratização das oportunidades.

E a desigualdade se comprova na rara presença de pessoas negras nas principais esferas de decisão, por circunstâncias quase nunca percebidas em suas razões, as quais se devem ao racismo estrutural, nascido com a nação, e em cujo contexto a posição subalterna do indivíduo negro é tida como natural, normal e até mesmo inerente às suas origens.

(1) Máscara Que Se Usa nos Negros Que Têm o Hábito de Comer Terra” (c. 1820-1830), de Jean-Baptiste Debret.. Museu Castro Maya/

Em outra linha de pensamento vemos que, já no século 20, as estruturas dominantes desenvolveram ações táticas, partindo do pres­su­pos­to de que, com a imigração europeia, a miscigenação da po­pu­la­ção ­iria fa­tal­men­te le­vá-la a um “branqueamento”. Alguns cien­tis­tas e in­te­lec­tuais de renome de­ram sus­ten­ta­ção a es­sa ideia que, avalizada por teses eugênicas, de “aperfeiçoamento” da espécie e higiene, ganhou status de ideo­lo­gia e for­ma de po­lí­ti­ca pú­bli­ca. Tanto que, em 1946, o de­cre­to-lei nº. 7.967 es­tabeleceu o seguinte: “Os imi­gran­tes se­rão ad­mi­ti­dos de con­for­mi­da­de com a ne­ces­si­da­de de pre­ser­var e de­sen­vol­ver o Brasil na com­po­si­ção de sua as­cen­dên­cia eu­ro­peia”. Mas os objetivos não foram alcançados, como comprovam as estatísticas.

Observe-se que, em inglês e francês, respectivamente, os termos “nigger” e “négro” são ofensivos por conotarem escravidão. Entretanto, na década de 1930, era introduzido na língua francesa o vocábulo “négritude” pa­ra sig­ni­fi­car: a cir­cuns­tân­cia de se per­ten­cer à co­le­ti­vi­da­de dos afri­ca­nos e des­cen­den­tes; e, mais, a cons­ciên­cia de per­ten­cer a es­sa co­le­ti­vi­da­de e a ati­tu­de de rei­vin­di­car-se co­mo tal. Vem daí a opção do ativismo afro, no Brasil, pelo qualificativo “negro”, como estratégia de aglutinação na luta pela igualdade —e contra a falácia da “democracia racial” brasileira.

Luís Gama (1830-1882) nasceu livre, mas foi vendido como escravo ainda criança. Após conquistar a liberdade na Justiça, passou a defender os cativos nos tribunais. Calcula-se que tenha ajudado a libertar cerca de 500 pessoas. Folhapress/

Assim, neste momento de repetidas ameaças aos direitos de cidadania, as celebrações da Consciência Negra neste mês de novembro, instituídas por organizações do movimento negro há quase meio século, ganham maior significado.

E se justificam quando, parafraseando o poeta e estadista africano Léopold Senghor, afirmamos a existência e a relevância do povo negro —não como expressão de racismo ou complexo de inferioridade, mas sim com a intenção de, em harmonia com outras correntes de pensamento e ação, construir um humanismo totalmente humano, porque formado por todas as contribuições do ideário progressista, no Brasil e no mundo.

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