Racismo e democracia

Peço ao leitor que imagine que está diante de uma reportagem cujo título é: “Jovem testemunha roubo de moto, mas é preso e condenado pelo crime”. A julgar pelo título, a reportagem traz uma reviravolta.

Na primeira oração, o jovem tem o status de testemunha; na segunda, ele é o autor do delito; e, de modo célere, na terceira já foi preso e condenado.

Vamos introduzir no título um adjetivo, definidor de traço da aparência do jovem: “Jovem negro testemunha roubo de moto, mas é preso e condenado pelo crime”. O adjetivo é um marcador biológico que não se resume a indicar aspectos da corporalidade da testemunha. É uma palavra associada a representações negativas e significados implícitos. Com sua presença, será muito difícil que, num país de forte herança colonial, as pessoas se ocupem apenas com o significado explícito no título da reportagem.

Desde que introduzimos a palavra “negro”, sua poderosa carga negativada pelos preconceitos torna tudo possível, e o título da reportagem já não nos parece estranho. É evidente para o racismo que devemos desconfiar de uma testemunha negra. O preconceito reorienta nossa leitura, e a rapidez do processo que prendeu, julgou e condenou não nos causa perplexidade. Normal.

Outra reportagem do portal UOL traz o depoimento de jovem médica negra de Natal que teve a formatura acelerada e foi lançada na linha de frente contra a Covid-19. A médica, de jaleco e estetoscópio no pescoço, relatou cenas explícitas de discriminação racial em seu trabalho.

Embora vestida de médica, a cor de sua pele gritava uma negação de seu status perante olhos preconceituosos. O jovem não pode ser testemunha, a jovem não pode ser médica. É o racismo decidindo quem tem e quem não tem o direito de tornar-se cidadão. A cor da pele destina-lhes lugar inferior nas hierarquizações sociais.

Vistas as coisas assim, é a biologia (uns são plenamente humanos, por sua natureza superior; outros são manifestações inferiores de humanidade, também em razão de sua própria natureza) que decide a marginalização do negro, suas privações, o desemprego e a fome.

Se democracia pressupõe igualdade de direitos e oportunidades, é evidente que a afirmação da inferioridade biológica, essencial ao racismo, afasta os negros, a maioria da população, da possibilidade de competir e de realização plena.

Para Florestan Fernandes, “o negro vem a ser a pedra de toque da revolução democrática brasileira”. É a presença plena do negro na vida econômica, social e política que dará a medida da realidade de nossa pluralidade democrática. Não há conciliação possível aqui. Nossas tentativas de democratização não se aprofundam porque preferem buscar a conciliação impossível entre democracia e racismo.

O livro de estreia de Lima Barreto, “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, é de 1909, mesmo ano da eleição de Manuel da Mota Monteiro Lopes, primeiro deputado negro republicano. A Revolta da Chibata, liderada por João Cândido, é de 1910. Os negros querem participação política, cidadania plena e exigem o fim dos castigos corporais remanescentes da ordem escravista. Isaías Caminha, personagem de Lima Barreto, narra suas memórias para confrontar a tese da inferioridade congênita dos negros.

Se recuarmos a 1798, na Revolta dos Búzios, na Bahia, vamos encontrar o depoimento de Manoel Faustino (enforcado e esquartejado) nos autos da Inquisição portuguesa, afirmando que atuou na revolta para que o Brasil tivesse um governo, do qual as pessoas participassem por seus méritos e não pela cor da pele. Cito a historiadora Emília Viotti da Costa de memória (o livro é “Da Monarquia à República”).

Estamos no século 21 fazendo eco a Manoel Faustino, Lima Barreto e tantos outros. A diversidade é expressão de força e não de fraqueza. Todos são igualmente humanos? Para os que acreditam que sim, a resposta política mais adequada a uma realidade social com a rica diversidade da sociedade brasileira é o pluralismo (veja a Convenção da Diversidade/Unesco).

O pluralismo que aparece no preâmbulo de nossa Constituição e visa assegurar igualdade de oportunidades e expressão a toda diversidade que nos constitui. Resposta política a que, teimosamente, temos voltado as costas no Brasil.

 

Edson Lopes Cardoso Doutor em educação pela USP e coordenador do Irohin – Centro de Documentação e Memória Afro-brasileira

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