Meu black não é assim

Esse artigo foi escrito por mim e pelo Militante do Coletivo Nacional de Juventude Negra – Enegrecer, Nassor Oliveira. A intenção dele não é atacar os participantes ou organizadores da festa aqui citada, ou mesmo desmerecer a contribuição de pessoas de não negras para o movimento cultural, mas problematizar a dificuldade inerente ao povo negro em se ver representado, até mesmo na cultura que historicamente o identifica.

por Walmyr Junior * no Jornal do Brasil

No último fim de semana, após o lançamento das fotos de mais uma edição de uma festa na Mansão Botafogo denominada “Meu Black é assim”, seguidos compartilhamentos trouxeram um evento da sua repercussão rotineira para o centro de debates sobre apropriação cultural, identidade, estética negra, e como não poderia faltar, debates acalorados envolvendo o racismo institucional.

Ao abrir a página da festa no facebook vemos uma foto de perfil com uma analogia a modelagem de cabelo “Black Power”, porém não é só um Black Power comum, é um Black Power em forma de vinil, situando bem qual a associação que foi feita. Essa imagem, popularizada nos anos 70 como expressão estética de um movimento cultural, musical e também político, empoderou milhares de negros e negras não só naquele tempo, e que mais do que nunca retorna hoje como um símbolo de resistência a cultura hegemônica.

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Black Power em forma de vinil

Até aí tudo não tinha nada de mais, mas já na foto de capa do facebook do evento surge o elemento que contribuiu para a polêmica. Temos duas meninas loiríssimas de cabelo liso vestindo o boné do evento. Alem disso a cada 10 fotos publicadas se encontra ½ negro, a maioria esmagadora das imagens representam o público do evento: fenótipo tipico dos bairros mais elitizados do Rio de Janeiro (Tipo branco/a da zona sul), o que gerou fúria nos comentários e uma mobilização virtual que gerou mais de onze mil comentários só no álbum desta edição, fora os milhares de compartilhamentos e discussões que rolaram na rede.

E por que nós negros nos incomodamos tanto com isso? –“Era só ter comprado o ingresso para ir a festa?” – “o jovem negro favelado não foi na festa por que não quis?” – “Agora vai ter que ter cota nos eventos?”

Não, não é nada disso. Ainda existe uma barreira que divide a cidade, os espaços de sociabilidade, e isso vai muito além do escopo deste evento em particular, ele é só um exemplo de um fenômeno muito maior: As desigualdades estruturais, a marginalização do negro e a associação entre cor e condição financeira, qualquer pessoa que negar qualquer um desses fatos desafia a razão.

O que tem acontecido, como diria o rapper Emicida, é que a cultura negra, ou a Black culture (para gourmetizar ainda mais) está na moda. A estética, a música, e até mesmo o dialeto utilizado pelos negros dão o toque urbano e conceitual, e quem diga “exótico” à imagem da elite. Comercialmente falando, isso se torna um fenômeno explosivo, associando elementos da cultura que representa um povo, é associando a figura historicamente aceita pela sociedade da população não negra.

É fato que uma festa com fins lucrativos não tem obrigação de representar ninguém, o problema é que uma sociedade com fins lucrativos funciona da mesma forma. O mais vendável, o já instituído, prevalece. O marginalizado olha para a TV, para os comerciais, para todas as representações públicas e não consegue se enxergar. Nem mesmo nos locais onde ele de fato está na realidade, como os bailes funk das novelas, até mesmo o lugar ocupado infelizmente pela maioria negra é representado na TV por modelos brancos saídos de revistas adolescentes.

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* Walmyr Júnior é morador de Marcílio Dias, no conjunto de favelas da Maré, é professor e representante do Coletivo Enegrecer como Conselheiro Nacional de Juventude (Conjuve). Integra a Pastoral Universitária da PUC-Rio. Representou a sociedade civil no encontro com o Papa Francisco no Theatro Municipal, durante a JMJ.

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