“Meu filho foi adolescente infrator, mas hoje vejo sua morte como racismo”

“Meus planos não eram envelhecer só com dois dos meus três filhos. Eu escolhi tê-los, fiz planos para cada um deles. Mas nós, negros e negras, não temos o direito de sonhar com o futuro dos nossos filhos, porque o plano é nos matar.

Rafael, meu segundo filho, foi assassinado pela polícia no dia 5 de dezembro de 2006, com 20 anos, mas sua humanidade, afetos e perspectivas de futuro foram tirados pelo Estado seis anos antes, quando ele se tornou um adolescente autor de ato infracional, e lhe foram negados os direitos de recuperação.

Lembro como se fosse ontem a primeira vez, em novembro de 2000, que recebi a ligação do policial para avisar que meu filho estava detido. Trabalhava como cozinheira em um restaurante, e eu estava no trabalho. No almoço, meu celular tocou e desliguei —estava certa de que era um trote. Na tentativa seguinte, atendi e ouvi na outra linha um policial informar a prisão do Rafael.

‘A imagem do rosto dele roxo nunca mais saiu da minha memória’

Fui direto para casa buscar os documentos e fui para a delegacia. Quando o vi subir as escadas de bermuda, sem camisa, descalço, e com sinais de espancamento —suas costas estavam sujas de marcas de botina, e seu rosto estava roxo, me desesperei. Essa imagem nunca mais saiu da minha memória.

Dentro da delegacia, um delegado me orientou sobre o que fazer e me permitiu vê-lo. Sozinhos perguntei sobre o crime sem acreditar no que acontecia —qual mãe quer acreditar que seu filho fez algo ilegal? “Fala logo quem é o culpado”, disse para ele. Rafael ficou quieto e chorou. Sem resposta, entendi que ele realmente tinha responsabilidades sobre as acusações.

Fiz de tudo. Me endividei para comprar o que acreditava que faltava para ele e o matriculei em uma escola particular. Mas mesmo depois das tentativas para contornar a situação, por quatro anos, dos 16 aos 20 anos, ele passou mais tempo preso do que em liberdade. Seus crimes eram sempre os mesmos: participação em roubos.

Nas quatro vezes em que foi preso, eu decidi, assim como fazem muitas mães, não abandoná-lo.

“Meu objetivo era mostrar para eles que existe afeto fora daquele lugar”

Minha postura pró-ativa durante os dias de visita chamou a atenção de todos, inclusive de um agente penitenciário que me deu um exemplar do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), um bloquinho e uma caneta. Ao entregá-los me recomendou ler, e caso tivesse dúvidas, perguntar a ele. Percebi que ele queria me ajudar a entender o sistema.

Compreendi que havia uma lacuna entre o que o documento exigia quanto às medidas socioeducativas e o que de fato acontecia. Enquanto o ECA prevê que o adolescente autor de ato infracional deva assumir suas responsabilidades e ser recuperado com medidas socioeducativas, eu via a desumanização do meu filho.

Uma vez, preparamos um almoço em família. Da cozinha o chamei para arrumar a mesa, mas ele não respondeu. Cheguei até a sala, tentei de novo, fui ignorada. Ao usar o código pelo qual era identificado no Degase [Departamento Geral de Ações Socioeducativas], ele se levantou assustado. Eu fiquei desesperada, porque as violências que ele relatava sofrer e a forma com que ele era tratado nas unidades em que passou influenciavam como ele se comportava aqui fora.

Em sua última detenção, eu decidi ir até a direção da unidade e juntos formulamos atividades socioeducativas para reunir e gerar afetos entre familiares e adolescentes. Uma delas foi produzir um calendário de datas comemorativas, e transformar cada uma delas em uma grande festa.

Um dos eventos que mais me marcaram foi o Dia das Mães. Desde nova tive momentos grandiosos com a minha família, e quis reproduzi-los dentro da unidade. No pátio, juntamos as mesas das salas de aula e cada uma das mães levou pratos e lanches. Meu objetivo era mostrar para eles que existe vida e afeto fora daquele lugar.

‘Te levaram de mim, mas enquanto estiver viva quero mudar essa situação’

Eu e outras mães passamos a nos encontrar algumas horas antes da visita em frente ao portão. Eu lia o estatuto e tirava as dúvidas. Assim criamos uma rede nomeada de Movimento Moleque.

Nossa primeira ação aconteceu no dia 10 de dezembro de 2003. Ao menos 30 mães de diferentes unidades da cidade do Rio de Janeiro se reuniram. Nos vestimos com roupa preta, demos as mãos, denunciamos as torturas que nossos filhos sofriam.

Mas, infelizmente, a situação pouco mudou. Depois de solto pela última vez, em 2004, Rafael continuou na vida do crime. Briguei com ele diversas vezes, tentei tirá-lo dos lugares e das más companhias. Meu filho ficou vivo mais dois anos até ser assassinado pela polícia, no mesmo dia em que me formei como técnica em educação popular.

Frustrada, me questionei porque não fui mais rápida do que o sistema, que, personificado nos policiais, matou o meu filho. Ao vê-lo morto em uma mesa, falei: ‘Filho, eu não vou parar. Te levaram de mim, mas enquanto estiver viva quero mudar essa situação’.

Nos últimos 20 anos, ajudei em manifestações, fui convidada para debates pelo Brasil todo e até internacionalmente. Nunca deixei de estudar, e compreendi que o meu filho não foi morto porque se tornou um adolescente infrator, mas porque é negro, e o racismo nos mata todos os dias.

Ao ver cada vez mais mulheres conscientes como eu, acredito que tive justiça pelo assassinato do Rafael. Pois toda essa luta que travo é para que cada vez mais pessoas possam despertar contra o genocídio da população negra.”

 

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