Minha mãe, Marielle Franco, e o funk dentro de mim

O destino já estava traçado, em 1998: no famoso e nobre Complexo da Maré, nasceu uma funkeira.

Na família referência forte, a mãe, durante o auge das equipes de som que formavam paredes inteiras com alto-falantes poderosos, foi “garota furacão 2000”. E, quando a moda era usar roupa de veludo e as favelas se divertiam e se dividiam entre o lado A e lado B nos famosos bailes de corredor, meu pai estava lá.

Essa menina sou eu, Luyara Franco. Hoje com 21 anos, entendo a potência do funk como uma expressão em um quase-grito de urgência para as realidades que vivemos na favela e, exatamente por isso, consigo perceber uma crescente escalada de criminalização desse ritmo que movimenta tanta coisa dentro e fora da favela.

O funk se impõe como expressão cultural de resistência a uma sociedade na qual, desde a sua constituição, o atrasado modelo educacional e racismo estrutural não permite reverter os seus preconceitos arraigados. Ahh, mas “quando toca, ninguém fica parado”.

Na contramão de uma sociedade que deprecia o funk, considerando como subcultura uma arte que contextualiza a dura realidade das favelas, vi minha mãe, Marielle Franco, construindo sua trajetória política sem jamais abrir mão de reivindicar o seu lugar como moradora da favela e orgulhosamente cria do funk.

O que define cultura? E quem define cultura? Uma consulta ao dicionário Aurélio explica um ponto de vista: “Complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições, das manifestações artísticas, intelectuais etc, transmitidos coletivamente e típicos de uma sociedade”.

Vai me dizer então que funk brasileiro não é cultura? Ter que reafirmar, ainda hoje, que funk é cultura, é insistir para que o conceito de cultura não fique restrito ao que a elite produz ou do que se apropria do povo pobre —assim como foi com o samba, o carnaval, o jazz e tantas outras expressões culturais que resistem até hoje.

Amigos se abraçam durante baile na Nova Holanda, no Complexo da Maré (Foto: Felipe Cordon/ PerifaConnection/ FolhaPress)

Cultura é o resultado de um apanhado de expressões de um povo que se manifesta em sua ação prática. Sendo popular, legítimo e compartilhado por muitos, é cultura. Precisamos entender que, dentro de uma realidade, cada um fala do seu próprio lugar e se expressa como pode. Se você fica indignado quando afirmo a potência e o capital cultural que o funk carrega, mas ignora o contexto e a realidade de opressão e violências que se vivem nesses espaços, você está sendo intolerante e preconceituoso.

Para alguns, essa frase vai parecer extremista, e muitos irão se ofender, mas a realidade é que definir o que é ou não cultura já é um passo contraditório e passível de erro, já que a palavra significa algo improvável e plural.

Negar que funk é cultura é o mesmo que renegar toda uma sociedade e seu modo de se expressar artisticamente —algo que, por exemplo, índios sofreram com a chegada dos portugueses, ou os africanos, durante a escravidão. Se o funk é hoje uma instituição e serve para expor as crenças e realidade de um povo, tem a mesma função social que o rap, por exemplo.

Por isso, negar como uma forma real de cultura seria desacreditar a validade e importância de ambos os estilos. Renegá-lo é intolerância e preconceito com pobres, como querer negar que eles podem e devem se expressar da forma que puderem. Lembrando que Chico Buarque, Tom Jobim e Caetano descreveram muitas vezes mulheres como objetos. Pessoas que encontraram sua própria forma de se expressar sem a interferência de nenhum outro grupo maior ou mais poderoso. Eles criaram a própria cultura.

Grafite em homenagem a vereadora assassinada Marielle Franco na Rua João Paulo I, local do crime (Foto: GABRIEL MONTEIRO / Agência O Globo)

O funk tem o papel de unir a massa, de administração de um mercado independente, de socialização sem preconceitos. Não será o governo ou um grupo que vai validar aquilo que já está embrenhado em nossa sociedade, faz parte de nossa vida e do entretenimento de quem for. Atrelado a isso temos a banalização do preconceito, que também contribui para a permanência do racismo no século 21.

De acordo com o conceito de banalidade do mal, da filósofa Hannah Arendt, quando uma atitude agressiva ocorre constantemente, as pessoas param de vê-la como errada. É assim que o Estado age na favela, construindo a percepção de que favela é sinônimo de violência e que funk é sinônimo de crime, com a necessidade de ser combatido. Parte da imprensa compra e reproduz esse discurso espetacularizando prisões de DJs e MCs. Ou seja, seguindo o pensamento de Arendt, o tratamento violento habitual do estado para com a favela torna o processo de criminalização do funk, da pobreza e da negritude aceitável para determinados setores da sociedade.

Daqui seguimos firmes no compromisso de, seguindo os passos de minha mãe e honrando as melhores memórias afetivas do meu pai, defender que o funk é uma expressão da cultura favelada que insistem em criminalizar —e nós, em resistir.

*Luyara Franco, 21, mulher preta periférica, funkeira e militante de direitos humanos, é integrante da diretoria do Instituto Marielle Franco e estudante de educação física (UERJ).

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