Moços, superem

por: Flávia Oliveira

Cinco gerações se passaram desde a abolição e o Brasil ainda tem jovens racistas. Eles se mostram nos estádios e nas redes sociais

Foto: Marta Azevedo

Nada mais triste para quem cruzou a fronteira da maturidade do que mirar, na outra margem, jovens com ideias atrasadas. Aconteceu esta semana, um par de vezes. O casal Maria das Dores e Leandro, de Muriaé (MG), foi alvo de comentários racistas numa rede social, dias depois de a moça, negra, postar foto com o namorado, branco. A última quinta-feira já se despedia, quando o goleiro Aranha, do Santos, foi xingado de macaco por torcedores do Grêmio, num estádio em Porto Alegre. Nas imagens do canal ESPN é visível a pouca idade dos racistas; uma foi identificada na mesma noite. No episódio das Gerais, a polícia conseguiu identificar os agressores. Moram em São Paulo, têm de 15 a 20 anos. É o fim.

O Brasil foi o último país do continente americano a abolir a escravidão, em 1888. A Lei Áurea, no 13 de maio de 2014, completou 126 anos. Cinco gerações se passaram e o país ainda tem jovens racistas. Desde a virada do século XX, o total de habitantes saiu de 20 milhões para 202 milhões. E o país ainda tem jovens racistas. Em 1890, a esperança de vida ao nascer não chegava a 28 anos; hoje, passa de 70 anos. E o país ainda tem jovens racistas. A taxa de analfabetismo dos maiores de 15 anos saiu de 65%, em 1900, para menos de 9%, atualmente. E o país ainda tem jovens racistas. Moços, superem essa herança.

Brasileiros que ainda não chegaram aos 30 anos de idade reproduzem, nos estádios e nas redes sociais, ideias racistas de dois séculos atrás. Nos Estados Unidos do século XIX, negros eram representados como gorilas pela Ku Klux Klan. A ofensa nasceu de um desvio de interpretação da teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, que ajudou a justificar uma das bases do colonialismo europeu, a escravidão. O homem branco seria o topo da cadeia evolutiva, o negro, a base. A dominação, sob esse prisma, ocorria sem remorso.

Faz tempo que o planeta inteiro sabe que raça não existe. Homens e mulheres, quaisquer que sejam seus tons de pele, são rigorosamente iguais. Ao contrário do que fez crer certa campanha equivocada, meses atrás, não #somostodosmacacos. Humanos e macacos tiveram um ancestral comum, seis milhões de anos atrás. Mas as duas espécies se desenvolveram separadamente. Homem é homem. Macaco é macaco. Racismo é crime.

A injúria racial está no Código Penal e prevê pena de um a três anos de prisão. A punição pode aumentar em um terço, se o crime for cometido na presença de várias pessoas (caso dos estádios de futebol) ou por meio que facilite sua divulgação (em frente às câmeras de emissoras de televisão e nas redes sociais, por exemplo). A dificuldade de punição existe, porque os racistas, não raro, se escondem na multidão ou em falsas identidades na internet.

Nos dois crimes tornados públicos na semana passada, há provas materiais disponíveis. As vítimas formalizaram as queixas. Os investigadores não tiveram dificuldade em identificar os autores. A condenação dará fim à certeza da impunidade. De quebra, poderá tirar a graça da falsa brincadeira e desestimular outros racistas.

Se o progresso (insuficiente, mas evidente) da sociedade brasileira nos últimos 126 anos não conseguiu limar o preconceito racial de nossos jovens, a Justiça haverá de fazê-lo. Passou da hora de enterrar a herança nefasta, injusta e burra. E abrir caminho para a chegada do dia em que, ao mirar a margem oposta, os adultos, enfim, enxergarão um futuro melhor.

Fonte: O Globo

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