Morte de Marielle Franco não é melodrama

Há mais de um mês o Exército brasileiro assumiu o controle da segurança pública no estado do Rio de Janeiro, após um decreto presidencial para enfrentar o crime. Uma das vozes mais eloquentes contra essa intervenção era a da vereadora Marielle Franco, 38 anos, uma mulher negra e bissexual que veio da favela da Maré.

Em 14 de março, ela foi assassinada com quatro tiros na cabeça depois de participar de um evento com outras jovens mulheres negras no centro do Rio de Janeiro.

Marielle foi eleita em 2016 e era a única representante negra do sexo feminino entre os 51 vereadores da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Ela era uma clara defensora dos direitos humanos, feminista, mãe e filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Marielle também acabara de ser nomeada relatora de uma comissão legislativa que monitoraria a intervenção militar.

“Quem monitora os observadores, certo?”, ela perguntou em uma entrevista no início deste ano. “Quem deve ser responsável?”. Esta não era uma pergunta retórica; era uma questão urgente.

Durante o mês de janeiro, pelo menos 154 pessoas foram mortas pela polícia no Rio de Janeiro e seis policiais foram mortos enquanto trabalhavam. A maioria dessas pessoas – os civis e os policiais – era negra e vinha dos bairros mais pobres da capital do estado.

Há uma preocupação de que esses números aumentem com os militares no comando. O comandante máximo do Exército Brasileiro, general Eduardo Villas Bôas, recentemente disse que suas tropas precisavam de “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade no futuro”, uma referência à investigação sobre os abusos cometidos durante a ditadura militar que durou de 1964 a 1985. O general também manifestou interesse em obter “mandados coletivos” que seriam emitidos para uma ampla área – por exemplo, uma favela inteira – em vez de um endereço específico.

Marielle Franco defendia todas as vítimas dessa “guerra às drogas”. Ela ajudou dezenas de famílias de policiais mortos em serviço. Em sete anos, ela dissera nunca ter visitado uma família que vivesse “da Tijuca para o Centro”, ou seja, a maioria dos policiais residem nas periferias do Rio de Janeiro. Mas ela também foi uma crítica destemida da violência do estado. Poucos dias antes de ser assassinada, ela acusou o 41º Batalhão da Polícia Militar, a unidade mais letal da cidade, de aterrorizar os moradores da favela de Acari. Na véspera de seu assassinato, ela lamentou a morte de Matheus Melo, 23 anos, que levou um tiro enquanto saía de uma igreja. “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM”, ela escreveu por meio de sua conta no Twitter. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”.

A identidade e o motivo dos assassinos de Marielle continuam desconhecidos, mas está claro que o crime foi premeditado: os assassinos esperaram sua saída de um evento e depois a seguiram em dois carros por alguns quilômetros. Então eles se empenharam em um tiroteio cuidadosamente direcionado e saíram rapidamente. Segundo os investigadores, as balas vieram de estoques de munição da polícia (o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, disse acreditar que elas haviam sido roubadas de uma agência dos correios).

O Brasil é um dos países mais mortais para os defensores dos direitos humanos no mundo, ao lado de Colômbia, México e Filipinas. De acordo com um relatório divulgado pela ONG Front Line Defenders, 67 ativistas foram mortos no Brasil no ano passado. De todos os casos que a ONG acompanhou, apenas 12% resultaram em prisões.

E mesmo quando os assassinatos de defensores de direitos humanos brasileiros recebem cobertura na mídia, as pessoas aqui frequentemente criam outras narrativas para explicá-las: a pessoa foi morta por um amante, por traficantes de drogas ou pela máfia, ou cometeu suicídio. E a pessoa pode ter merecido isso. Está acontecendo agora com Marielle. Logo após seu assassinato, notícias falsas começaram a circular nas mídias sociais. Algumas diziam que ela era casada com um traficante de drogas, outras, que ela fazia parte de uma organização criminosa. Alguns artigos diziam que ela fumava maconha. Outros afirmavam que ela teve um bebê aos 16 anos (a verdade: ela teve um bebê aos 19 anos, mas não consigo imaginar como isso seja relevante para seu assassinato).

Passadas algumas semanas, a narrativa sobre a morte de Marielle começa a mudar. Os noticiários de televisão fazem o melodrama, concentrando-se na tragédia; nunca conseguimos obter fotos suficientes de familiares chorando. Em seguida, colocam tudo sob o guarda-chuva mais amplo da “violência” do Rio de Janeiro, para que possam concluir anunciando alegremente que o governo vai liberar alguns milhões de reais extra para a intervenção militar no Rio de Janeiro. Problema resolvido.

Isso é exatamente o oposto do que Marielle Franco defendia. Ela passou seus dias lutando contra a desigualdade e a injustiça – não contra uma noção abstrata de “violência”. Portanto, não adianta trazer mais terror e repressão às favelas, matando mais pessoas do mesmo tipo (negras, jovens e pobres). Desviar recursos de áreas como saúde e educação para financiar mais balas e tanques só agravará a violência.

Marielle via as mulheres como uma “ameaça real ao status quo”, como ela escreveu no ano passado em um artigo de jornal. Na opinião dela, o governo queria restringir a democracia no Brasil. “Mas nós, mulheres negras dos bairros pobres, vamos afrontar esse absurdo autoritário”, disse ela.

Suas últimas palavras gravadas foram endereçadas a uma multidão de jovens negras: “Vamo que vamo, vamo junto ocupar tudo (sic)”.

Vanessa Barbara é editora do site literário A Hortaliça e autora de dois romances e dois livros de não ficção.

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