Após resolução do dia 20, Serviço de Verificação de Óbitos deixou de fazer autópsia em casos suspeitos da Covid-19 e corpos são enterrados como se fossem confirmados, mas não entram no balanço oficial
Por MARINA ROSSI, do EL País
“Tia, olha a chuva, tira a roupa do varal”. O alerta de uma das sobrinhas de Olga, 77, que vivia na casa vizinha não chegou a tempo. A chuva que atingiu São Paulo na semana passada molhou todas as roupas da aposentada que, naquele momento, já estava desacordada no sofá. Foi a mesma sobrinha que, minutos mais tarde, sem ouvir sinal da tia, a encontrou quase já sem vida na sala. A aposentada faleceu depois de dias se queixando de tosse, falta de ar e coriza. Foram três idas ao hospital e nenhum exame realizado. Apesar de os sintomas serem similares aos da Covid-19, no atestado de óbito a causa de morte registrada é “broncopneumonia, doença de refluxo gástrico, osteoporose, depressão”. A conclusão foi feita baseada apenas em um questionário aplicado aos parentes pelo Serviço de Verificação de Óbitos (SVO). No centro nevrálgico da maior pandemia da história recente do país, São Paulo, Olga não foi testada, nem em vida, nem após a morte, para o coronavírus. “Nunca foi feito exame de nada. É no mínimo estranho atestar que a morte de uma pessoa de 77 anos, com muita tosse e no meio de uma pandemia, foi por broncopneumonia, sem que nenhum teste fosse feito”, ressalta outra sobrinha de Olga, Joyce Lima de Sousa Fabri, 37, analista de sistemas.
A morte da aposentada é um dos indícios que apontam para a existência de subnotificações de mortes por coronavírus, especialmente depois da publicação de uma resolução que flexibiliza a maneira como os óbitos são atestados em São Paulo. Quando ocorre um óbito, a regra normal determina que, se a causa não foi atestada por um médico privado ou pelo próprio hospital, a ocorrência deve ser encaminhada para o Serviço de Verificação de Óbito (SVO), órgão municipal responsável por examinar corpos de pessoas que morrem por razões naturais desconhecidas. Geralmente, uma autópsia é feita no corpo, para se confirmar a causa de morte, que constará no atestado de óbito, entregue à família. No entanto, nos casos em que há qualquer suspeita de que o óbito possa ter sido causado pelo coronavírus, o protocolo é outro desde o último 20 de março, três dias depois do registro da primeira morte pela doença na cidade —e no Brasil.
A resolução SS 32, do Governo de São Paulo, estabeleceu que a confirmação da causa de óbitos por coronavírus não pode ser feita mais por autópsia, pelo risco que isso pode representar aos profissionais que realizam o procedimento, já que um corpo ainda pode transmitir o vírus até 72 horas após o falecimento. A mudança, segundo o documento, se baseia em determinações da Organização Mundial de Saúde, que desaconselham a realização do procedimento para casos suspeitos ou confirmados da Covid-19. “Em situação de pandemia, quaisquer corpos podem ser considerados de risco para contaminação e difusão da doença”, explica a resolução. Na prática, muitas das mortes nunca vão ser consideradas como causadas pelo coronavírus se não forem atestadas no hospital. E com o gargalo da falta de testes e de mão de obra para a realização dos exames, é possível que o número real de quem morreu pela Covid-19 nunca seja, de fato, conhecido.
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