A mulher e o cabelo – uma relação de servidão

Eu ligo muito pouco para comprimento do cabelo. Gosto de mantê-lo limpo e hidratado, mas não tenho medo de cortar. Se tive, foi quando criança, afinal criança costuma ter medo de tudo. Na época, achava que o único cabelo possível era comprido e ponto final. Acho também que foi a única época em que o deixei tão grande, porque aos 12 anos ele estava na altura do queixo e 22 anos depois não passa do ombro, momento em que já me enerva e mando cortar.

Mas sempre percebi uma relação de servidão da mulher com seu cabelo. Via isso nos salões da vida onde era obrigada a entrar para cortar o cabelo, no máximo duas vezes por ano. Vi mulheres saírem em prantos do salão, como se um dedo lhe tivesse sido amputado, quando na verdade o cabeleireiro tirou um dedo a mais daquela longa crina que as mulheres carregam. A impressão que passa é que elas só se sentem mulheres quando estão com aquele longo cabelo escovado, tentando imitar as impossíveis capas de revistas, onde todas são magras, bem penteadas, com longas madeixas bem tratadas, retocadas à exaustão por um programa de manipulação de imagens.

Cabelo é algo que cresce depois de cortado. Mas as mulheres transferiram para eles toda uma cadeia de inseguranças, como se apenas com longas madeixas elas se sentissem mulheres “de verdade” e qualquer agressão a eles seria uma agressão à sua feminilidade, seu poder como fêmea. A própria religião patriarcal impõe uma série de regras aos cabelos femininos. Basta ver a imposição do hijab no islamismo, onde em alguns países mais fundamentalistas impedem que qualquer fio de cabelo apareça para fora. Mulheres precisam cobrir as cabeças nas igrejas, nas mesquitas, nas sinagogas. Eu realmente entendo que, se a mulher se sente bem desta forma, seguindo sua religião, ninguém deve criticá-la por isso, mas é de se notar como essas imposições são sempre para a mulher. Homem não usa burka, certo?

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Como detentoras e propagadoras do pecado original, nossos cabelos sofrem de uma série de regras mesquinhas. O mercado de beleza para cabelos não para de crescer, com propostas milagrosas para mudar a imagem da mulher, para deixá-la com aquele poder fatal. Vendeu-se por tanto tempo uma imposição ao cabelo liso que muitas mulheres tiveram a saúde prejudicada e até perderam os fios por agressivos tratamentos de alisamentos. O cabelo só é aceito se for dentro de certos padrões. Cabelo crespo e volumoso? Não, afinal não está na capa da revista.

A choradeira nos salões leva a questões muito mais profundas. Já vi moças dizendo que não cortavam o cabelo porque o pai não gosta, porque o namorado não quer, porque homem não gosta de mulher com cabelo curto. Já ouvi homens falando que mulher de cabelo curto é “menos mulher” e que parece “sapatão”, afinal, mulher tem que ser feminina. Um amigo meu quase viu a separação dos pais porque a mãe cortou o cabelo curto e o marido não gostou. Já ouvi merdas e mais merdas desse tipo quando passei a máquina no meu cabelo e o mantive curtinho por dois anos. Disseram que eu tinha virado trombadinha, que estava feio, que eu tinha acabado de sair da FEBEM. Ou seja, eu tinha “perdido” a qualidade que me fazia ser “mais mulher” diante dos olhos masculinos. E eu estava cagando para tudo aquilo.

Isso é só mais um exemplo de quantas prisões existem para calar a força das mulheres. Nossos corpos são podados, machucados, depilados, cortados e maculados pelas vontades masculinas e pela ditadura da beleza, que amanhã já vai dizer que cabelos volumosos e cacheados são tudo e quem tem cabelo liso está fora da moda. Veja os portais femininos e compare quantos textos são sobre carreira ou saúde e quanto são sobre bumbuns durinhos, cabelos hidratados, pele sedosa e sem estrias. Veja quantas vezes nossos corpos são objetificados para que pertençam à um padrão impossível de seguir. O quanto essa servidão faz tantas de nós infelizes com nossa própria imagem, por que não estamos à altura da modelo na capa da revista?

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Eu já sofri muito com isso. Tive uma adolescência difícil por conta de um problema de saúde que me fez saltar dos 60 para os 120kg com apenas 15 anos. Eu era o patinho feio da turma. Meu cabelo ficou um horror por conta dos remédios e nunca mais foi o mesmo. Com 18 anos é que comecei a perder um pouco do peso extra, mas ainda assim “não atraía olhares masculinos”. Felizmente, nunca sofri tanto com bulliyng na escola e tinha o apoio da minha mãe e das minhas amigas. Mas me sentia mal comigo mesma por não caber naquele vestido ou por não ter aquele cabelo “lavou-saiu”. Hoje me sinto mais confortável comigo mesma e meu cabelo não sofre com os ditames da moda, mas uma vida inteira educada para ver meu corpo como algo feio deixou suas marcas. Marcas estas que me fazem sentir desconfortável numa praia, por exemplo.

É só mais uma das amarras que nos prendem. Felizmente, a do cabelo, eu não tenho mais. E gostaria que mais mulheres se desprendessem das suas.

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