‘Mulher indígena é o futuro’: a luta de lideranças dentro e fora de aldeias

FONTEPor Nathália Geraldo, de Universa
A ativista Narubia Werreria, do povo Iny, na Ilha do Bananal, em Tocantins, fala de suas lutas (Foto: Divulgação/Lucas Santos Nascimento)

Quando a ativista indígena Narubia Werreria, do povo Iny, da Ilha do Bananal, de Tocantins, esteve na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP26), em novembro do ano passado, realizada na cidade escocesa de Glasgow, ouviu de um homem indígena local que a árvore mais antiga da Europa estava passando por uma transição de energia, da masculina para a feminina. A história reverberou em suas próprias crenças. “Esse homem mais antigo nos disse que a Terra precisa dessa purificação da poluição que vemos ir para o solo e para os rios. E, para nós, de fato, a regência e a sobrevivência estão, espiritualmente, no feminino”.

Cantora, compositora e escritora, Narubia é uma liderança que se divide entre o contexto urbano e o rural para reivindicar espaços aos indígenas. Presidente do Instituto Indígena do Tocantins (INDTINS), se mobiliza politicamente para resguardar a história e a memória dos povos originários. Tanto que esteve presente no Acampamento Terra Livre (ATL) — realizado em Brasília no início do mês, com a demarcação de terras indígenas como uma das questões mais urgentes — e leva o debate sobre essas temáticas às redes sociais (no Instagram, ela é a @werreria).

Jera Guarani, da aldeia Tenonde Porã, também atua nas esferas pública e privada para garantir o bem-estar de seu povo, localizado no bairro de Barragem, no distrito de Parelheiros, na cidade de São Paulo. É lá que a pedagoga formada pela USP faz trabalho de base para entender como o comportamento do grupo se transformou nos últimos 30 anos. Segundo ela, ao mapear o que acontece dentro, como o aumento do uso abusivo de álcool entre os indígenas e o acirramento da discriminação de gênero, consegue provocar reflexões sobre o futuro da aldeia.

No Brasil, segundo o Censo de 2010, são 818 mil indígenas, sendo 502 mil moradores da zona rural e 315 mil nas zonas urbanas. Para Universa, as duas lideranças indígenas contam que, além das pautas coletivas, como a demarcação das terras, quem está nas cidades vive outra questão: o estereótipo sobre o que é “ser indígena”, sobretudo, dentro de uma sociedade racista e machista.

O futuro será a mulher indígena

“Quando nós, mulheres indígenas, estamos na cidade, sofremos um duplo preconceito, pelo racismo e pelo machismo. Há uma estrutura que constantemente nos inferioriza e acontece um fenômeno que só existe com povos indígenas: as pessoas acham que por estarmos em contexto urbano, ser indígena se torna uma condição transitória. Só que ninguém pergunta para um brasileiro que mora no Japão se ele virou japonês.

O presidente disse que indígenas estão “cada dia mais iguais a eles” [a fala de Jair Bolsonaro aconteceu em janeiro de 2020], e é como se fôssemos uma subcategoria de pessoas ou uma espécie de ser humano diferente. É esse tipo de enfrentamento que temos, como mulheres indígenas.

Narubia em sessão de homenagem a povos indígenas no Senado, em 2019, como então representante da Juventude Indígena Brasileira (Foto: Divulgação/Jane de Araujo/Agência Senado)

Nós queremos contar nossa história por nós mesmos, enquanto povo, mas o Brasil desconhece a própria história, ignoram nossos heróis e nossas alianças, que existem desde que percebemos que tínhamos um inimigo em comum que busca tirar nossas vidas e nossos territórios. Mas, se antes lutamos com arco e flecha, agora é com a caneta.

Desde a mudança para a democracia, nossos líderes souberam que a luta seria assim. Até porque segue o conceito colonial de dividir para conquistar, sejam os povos indígenas ou as mulheres.

Então, o futuro é a mulher indígena, ou não será. Não dá para pensar o mundo político sem a presença da mulher e, quando nós nos levantamos estamos representando o despertar histórico de quem viu seu corpo sendo subjugado de todas as formas, pela miscigenação forçada vinda do estupro de mulheres negras e indígenas.

Por isso, é fundamental nossa entrada em lugares de poder, para falar de políticas públicas. A demarcação das terras indígenas é uma das questões. Nossos governantes rasgam todos os dias a Constituição, em uma sociedade completamente corrompida que destrói nossas florestas. O homem branco só consegue pensar riqueza quando é monocultura; e para nós, a riqueza está na diversidade. É isso que nos enriquece enquanto filhos da terra e esse é nosso grande legado. A pauta urgente da nossa geração é querer ‘permanecer selvagem’. E isso é uma pauta de vida ou morte, não só para os seres humanos.” Narubia Werreria, 34 anos, é do povo Iny, da Ilha do Bananal, de Tocantins. Presidente do Instituto Indígena do Tocantins (INDTINS), também é cantora, compositora e escritora.

“Antes, nossa cultura era completamente equilibrada”

“O trabalho de base que faço na aldeia se dá pela questão das mulheres. Mas, também já fui puxada para o lado da política em muitos momentos, porque a luta das lideranças é pelo bem-estar de quem está na base.

Jerá Guarani, liderança da aldeia Kalipety, em foto de 2018 (Foto: Keiny Andrade/Folhapress)

Em 2012, por exemplo, foi um trabalho forte pela demarcação da terra Tenonde Porã, em que fui para Brasília, invadimos a secretaria da Presidência, fizemos protestos na Avenida Bandeirantes, em São Paulo. Lutamos pela demarcação por anos, e foi muito sentimento quando o então ministro da Justiça Eugenio Aragão assinou a portaria declaratória da nossa terra [em 2016].

Depois disso, voltei à minha aldeia para buscar refletir com meu povo sobre questões como o uso abusivo de álcool, as violências que surgem a partir disso e a desvalorização da mulher, que é um aspecto que vem de fora. Sou esposa, mãe, liderança e o que faço é quebrar as regras sem desrespeitar as tradições.

Os mais velhos dizem, por exemplo, que as pessoas da aldeia se casavam quando ‘sabiam se virar’. Então, isso nos faz pensar que não é nossa tradição uma menina se casar com 12 anos. Eu mesma não aceitei isso na minha época, já ‘causava’ desde aquela idade. Certamente, a mulher indígena sofre dentro e fora das aldeias. A discriminação de gênero é uma situação planetária.

Mas penso que nossa cultura era absolutamente equilibrada antes: na minha infância, via que os homens cantavam pros filhos dormirem, faziam comida, limpavam a casa, lavavam a roupa com as esposas. Quando a mulher estava menstruada, ficava em repouso e quem fazia tudo eram os homens.

Parece que depois de entrar energia elétrica onde moramos, bagunçou muita coisa e hoje temos que trabalhar isso, fortalecer nosso “Nhande Reko”, nosso modo de ser. As mulheres têm os mesmos direitos, merecem ser felizes e respeitadas como os homens. Nossa cultura não pode se basear na ideia de que somos menos.” Jerá Guarani, 40 anos, é liderança do povo Guarani da terra indígena Tenondé Porã, que fica em Parelheiros, São Paulo. Pedagoga, dá palestras em escolas e faculdades sobre a luta do povo indígena, principalmente Guarani.

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