“A mulher que aborta está na nossa família”

Autora da Pesquisa Nacional de Aborto 2016 e de livro sobre a epidemia de zika, Debora Diniz diz que é preciso mudar o debate sobre o tema no Brasil

Por Tory Oliveira Do Carta Capital

Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras fez pelo menos um aborto. Somente em 2015, 503 mil mulheres interromperam a gestação no Brasil. São 1,3 mil abortos por dia, 57 por hora, quase um por minuto.

As estatísticas, captadas na Pesquisa Nacional de Aborto – 2016, revelam uma realidade muitas vezes subterrânea e silenciosa, mais presente do que se imagina. “A mulher que aborta está dentro da nossa família e na nossa vizinhança. Ela não é uma fantasia criada pelo debate moral”, afirma a antropóloga Debora Diniz, uma das autoras do estudo e professora de Bioética na Universidade de Brasília.

A polêmica em torno da interrupção da gravidez voltou ao debate público por conta do voto de Luís Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal (STF), que considerou que o aborto até os três meses não é crime, e da emergência da epidemia de zika, que levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a recomendar que a opção pelo aborto seja liberada nesses casos.

Colunista no site de CartaCapital, Diniz também é um dos principais nomes quando se fala na epidemia de zika, responsável pela explosão estatística de crianças nascidas com microcefalia e outras complicações.

No Sertão nordestino, epicentro da doença, conviveu com a aflição de mulheres anônimas, médicos e cientistas. O resultado foi o livro Zika – Do Sertão nordestino à ameaça global(Civilização Brasileira). A antropóloga conversou com CartaCapital sobre zika e sobre os principais resultados da Pesquisa Nacional de Aborto:

CartaCapital: Qual é a expectativa para a sessão no Supremo Tribunal Federal que discutirá a possibilidade do aborto em caso de zika?

Debora Diniz: A nossa expectativa é que a sessão da semana passada [em que a Corte entendeu que o aborto até os três meses não é crime] tenha sido um prólogo de como o STF vai enfrentar essa matéria, sob uma perspectiva até mais simples de enfrentamento do que a descriminalização do aborto como um todo.

O pedido [para discutir o aborto em caso de zika] é movido por uma emergência humanitária, uma tragédia nunca vista no Brasil.

O pedido da interrupção da gestação no caso de zika tem uma comparação com o que já autorizamos em caso de estupro. Quando uma mulher fica grávida por uma situação de violência, nós reconhecemos que, para proteger sua saúde mental, sua integridade e seus direitos fundamentais, autorizamos que ela interrompa a gestação.

O pedido do zika é bastante semelhante. Não estamos falando da interrupção porque o feto tem algo, não é isso. É porque a mulher está em sofrimento mental dado o contexto de toda a epidemia, do silêncio que existe sobre o tema.

O que essa decisão [do STF], a luz do que os dados da Pesquisa Nacional de Aborto nos mostram é que o aborto é um fenômeno muito comum na vida das mulheres brasileiras. Um aborto por minuto.

CC: Por que é importante reforçar que a mulher que aborta é a “mulher comum” e que a prática é disseminada na sociedade?

DD: Ao afirmar e reconhecer que [a que aborta] é uma mulher comum, estamos dizendo que ela não é uma figura única, singular, diferente das outras mulheres.

Quando esse debate vai para o Congresso Nacional, fala-se do aborto como uma abstração. Mas, o que os números nos obrigam a mostrar é que aquela mulher que está dentro da nossa família, na nossa casa, na nossa vizinhança. É uma mulher comum. Ela não é uma fantasia criada pelo debate moral.

O segundo, que é um evento comum, tem duas implicações. Um que as mulheres sabem como fazer e se as pessoas querem, com a criminalização do aborto, diminuir o aborto ou sustentar a tese de que estão protegendo vidas.

Para aquela que querem proteger a vida potencial de um feto como elas acreditam ou reduzir o número de abortos, a única forma é descriminalizando o aborto, porque se consegue acessar essas mulheres e saber porque elas estão, em algum momento da vida, fazendo um aborto.

Quando o aborto é crime e ela faz na clandestinidade, o serviço de saúde não consegue acessá-la e conseguir trabalhar com ela para saber o que está dando errado para que ela tenha tentado fazer o aborto. Perde-se uma oportunidade de cuidado e de prevenção.

CC: Quando captada por pesquisas de opinião, a percepção é que a sociedade brasileira é contrária ao aborto: 79% são contra a legalização. Na sua opinião, por que o Brasil é tão contrário ao aborto? Quais as consequências desse posicionamento?

DD: Acho que há duas confusões aí. Isso é a confusão. Uma coisa é pesquisa de opinião, outras são práticas. O que a Pesquisa Nacional de Aborto nos mostra é quantas mulheres fazem o aborto.

Quando perguntamos para as pessoas qual é a opinião sobre algo, há a expectativa de uma resposta certa. Então, esses dados tão altos de contrários à descriminalização do aborto não representam as opiniões das pessoas sobre o que elas fazem, mas sobre o que elas acham que é a resposta certa.Então, comparar as duas coisas é um equívoco.

As pessoas respondem que elas são contra, mas elas fazem. Por que? Porque em um caso elas estão respondendo para o outro que está olhando para elas, na expectativa de que há uma resposta certa.

CC: A Associação Nacional dos Defensores Públicos encaminhou ao STF parecer favorável a possibilidade do aborto em grávidas contaminadas com zika. O Senado Federal manifestou-se contrariamente, dizendo que a “repulsa ao aborto está profundamente arraigada na cultura brasileira”. Na sua opinião, há chance do debate sobre os direitos reprodutivos mudar diante da epidemia da zika?

DD: É necessário que o debate mude. Se sempre foi urgente falar sobre o direito à interrupção da gestação, agora é ainda mais: temos uma epidemia em curso que torna a criminalização mais dramática para as mulheres em terrível sofrimento pelos incertos e severos efeitos do zika. Por isso, eu diria: sim, as chances são concretas, pois, pela primeira vez, vivemos com clareza a realidade de que proteger os direitos reprodutivos é proteger a saúde pública.

CC: Como relatou Ilana Löwy em artigo, os casos de mulheres que tinham filhos com complicações por conta da rubéola acabaram catalisando as discussões sobre a legalização do aborto no Reino Unido. Um dos fatores foi o convencimento da comunidade médica. Entre os médicos e médicas que a senhora conversou para produzir o livro, há posições favoráveis à opção de interrupção da gravidez nesses casos?

BB: Os médicos, assim como outras classes profissionais, não estão fora do mundo, e muitas vezes reproduzem padrões hegemônicos de moralidade. Mas sim, há muitos médicos no enfrentamento à epidemia do zika que estão sensibilizados ou são mesmo ativistas do direito à interrupção da gestação como uma proteção fundamental da saúde das mulheres.

CC:Para além da questão da síndrome congênita do zika, como você vê a discussão sobre a possibilidade do aborto como uma escolha da mulher?

DD: É uma absoluta necessidade de saúde das mulheres. Precisamos colocar as mulheres no centro do debate sobre a epidemia e no centro da conversa sobre interrupção da gestação. Transformar a escolha pelo aborto em um dilema – a vida da mulher ou a do feto, ou outras dublagens desse argumento – é ignorar que são as mulheres quem vivem a gravidez e cuidam das crianças.

CC: Hoje não há possibilidade de interrupção da gravidez e nem tratamento ou cura. O diagnóstico hoje é uma sentença para a mulher? Qual seria o amparo adequado que o poder público deveria oferecer?

DD: Assim é como as médicas de beira de leito no Sertão do país descrevem o momento do diagnóstico da síndrome neurológica do zika em fetos: como sentença para as mulheres.

O melhor amparo que o Estado pode dar às mulheres é a plena possibilidade de escolha, seja por interromper a gestação, com acesso a serviços seguros de saúde, seja por prosseguir e ter a certeza de que poderão contar com as políticas sociais necessárias e com acesso adequado ao cuidado em saúde para seus futuros filhos com deficiência.

E aqui há algo de importante a ser destacado: não sabemos qual a taxa de risco de uma mulher infectada pelo vírus zika ter seu futuro filho com alterações congênitas. Por isso, não falamos que a interrupção da gestação deve ser um direito porque algo acontecerá com o feto, mas porque a saúde mental da mulher está ameaçada, da mesma forma como acontece com a tragédia de um estupro.

CC: No epicentro da crise da zika estão hoje mulheres nordestinas do Alto Sertão. Na sua opinião, o perfil delas contribui para o apagamento do assunto nos meios de comunicação?

DD: Certamente. Essas mulheres não se tornaram anônimas ao poder por ocasião da epidemia. Elas sempre foram anônimas, esquecidas pelas políticas públicas. O fato de que sejam as vítimas principais dessa tragédia de saúde pública faz com que seu regime de desproteção apenas se aprofunde – e a ausência do debate sobre a epidemia nos meios de comunicação é um sintoma disso.

É preciso descrevê-las corretamente: elas são nordestinas, pretas e pardas, anônimas e pobres. Não são as elites urbanas que terceirizam o cuidado das crianças ou se locomovem com carros privados ou motoristas. Cada detalhe da tragédia da epidemia as impacta de forma particular, mas os noticiários não contam suas histórias.

CC: Na sua opinião, quais seriam as políticas públicas de saúde adequadas para o enfrentamento desta crise?

DD: Todas as que são pedidas na ação protocolada ao Supremo Tribunal Federal pela Associação Nacional dos Defensores Públicos: desde o acesso adequado a contraceptivos de reconhecida eficácia, para aquelas que não desejarem engravidar em tempos de epidemia, passando por acesso ao repelente, para aquelas que desejem seguir com seus planos reprodutivos, incluindo ainda o direito à interrupção da gravidez para aquelas que assim o desejarem e, para as milhares de mulheres que já têm ou terão filhos com a síndrome congênita, acesso aos serviços de saúde para estimulação precoce em um raio de 50 km da residência, ou transporte para distâncias mais longas.

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