Podemos dizer que o sistema capitalista, associado ao patriarcado, nunca facilitou a vida das mulheres. Em se tratando de dinheiro, a história das mulheres costuma aparecer atrelada à dependência financeira de seus pais e maridos. Tradicionalmente, em famílias nas quais existe uma herança a se dividir entre a prole, as filhas costumavam sair com a ínfima parte ou, não raro, permanecer de mãos abanando, a ver navios.
Texto de Karen Polaz.
Vejam só, até mesmo em famílias de elite. Para termos ideia, um importante estudo sobre o caso dos grupos empresariais brasileiros mostra que, no momento de dividir a herança, as filhas recebiam apenas as joias da família, como uma maneira de expressar que elas também tinham alguma participação no patrimônio familiar. Aos filhos homens, por sua vez, eram destinados bens materiais/imobiliários como fazendas, casas, carros etc., mas, sobretudo, a eles estava garantida a continuidade na direção da empresa, conservando o domínio dos meios de produção, da máquina geradora de poder e dinheiro, o que permitia que eles se mantivessem ricos e enriquecendo. Privilégio que as joias da família não poderiam proporcionar às suas irmãs.
Venho deste caldo sociocultural que costumamos chamar de classe média. Tomando o exemplo de minha própria família, a ascensão socioeconômica ao longo das últimas três gerações foi impressionante. A propósito, fenômeno que pode ser observado com certa frequência no país a partir da segunda metade do século XX, afinal muita gente “subiu” de vida. A história ascendente de minha e de outras famílias pode ser explicada, em partes, por certo êxito em profissões comerciais, que financiou algum acúmulo material e possibilitou investimentos múltiplos na educação escolar, que ainda constitui um meio decisivo de promoção social. Sem dim-dim, colegas, a vida teria sido outra. O bolo cresceu, sim senhor, mas na repartição dos pedaços, os homens continuaram abocanhando a maior parte. A geração de mulheres a que pertenço na família talvez venha a ser a primeira a receber uma herança mais igualitária ou, pelo menos, a primeira a conquistar um olhar mais justo acerca das necessidades que a falta de dinheiro traz tanto a homens quanto mulheres.
Lá em 1928, no ensaio “Um Teto Todo Seu” (.pdf), a inglesa Virginia Woolf já alertava: “A mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção”. Isso em 1928, minha gente. Não é necessária uma reflexão intensa para compreender o sentido mais amplo dessa frase: mulheres devem gozar de um mínimo de independência financeira se quiserem lograr outros tipos de autonomia e livre-arbítrio. Historicamente destinadas ao casamento e à maternidade, e a conseguir sustentar-se financeiramente quase que somente através do marido provedor, até os dias de hoje mulheres heterossexuais são acusadas de pensar apenas na conta bancária dos possíveis cônjuges.
Ora, uma vergonhosa injustiça se ponderarmos nossas condições históricas de existência: mulheres costumam ser as que menos dispõem ou não dispõem de quaisquer bens materiais em seu nome (nada que, frente às leis, se possa chamar de seu); que ainda são socializadas para deixar de trabalhar fora de casa a fim de cuidar dos filhos, preservando o “bem da família”; que acabam se sujeitando ao ciúme do marido e são convencidas a não trabalhar fora de casa; que, em pleno século XXI, continuam ganhando menores salários que os homens.
Nem vou entrar no mérito de discutir casos individuais sobre mulheres apontadas como sendo “interesseiras”, porque: 1. não somos ninguém para julgar moralmente comportamentos e decisões individuais; 2. isso desvia o foco do que importa assinalar e ofusca o entendimento necessário sobre uma estrutura social que há séculos barra mulheres à independência financeira em relação aos homens da família e aos homens em geral.
Dinheiro importa (e como!) e significa uma questão de sobrevivência. Como não pensar nele, principalmente quando falta? Pois é. Se não é fácil para nenhuma de nós — nem para mulheres brancas e escolarizadas —, imagina para as mulheres pobres, que formam a grande maioria da população brasileira? A desvantagem é devastadora.
Em famílias pobres, nas quais os recursos materiais a serem herdados são inexistentes ou escassos, filhas mulheres saem com uma mão na frente e outra atrás, contando apenas com a própria força de trabalho para conseguir o sustento e com um destino que não parece promissor na maior parte dos casos. Pobres, pouco escolarizadas e, em geral negras, essas mulheres estão imersas num meio social em que são altas as probabilidades de encontrar parceiros também em situação de precariedade de empregos, como desempregados e/ou em ocupações de salários baixos e elevada instabilidade. Assim, a dependência financeira em relação ao marido quanto ao pouco do dinheiro que sobra para elas, e para os filhos, é ainda mais brutal e imobilizadora.
A história, todavia, vai mudando. Às vezes, para melhor. O dinheiro do Bolsa Família, que chega às mãos de mulheres pobres por esse Brasil adentro, pode ser considerado uma tentativa de romper com o ciclo de extrema pobreza que as mantém sob o julgo do pai, do marido ou até do padre/pastor. O fato de receberem dinheiro e não comida (em forma de cesta básica, por exemplo), leva essas mulheres a se encontrarem diante de um leque de possibilidades de escolha que nunca haviam experimentado. Estamos falando de dinheiro vivo, bufunfa, grana, money! E também estamos falando de uma certa liberdade no que se refere aos homens. Pela primeira vez na vida. Pela primeira vez em séculos.
Essas são algumas das conclusões do estudo empreendido pela socióloga Walquiria Gertrudes Domingues Leão Rêgo (UNICAMP) e pelo filósofo italiano Alessandro Pinzani (UFSC): Vozes do Bolsa Família. Autonomia, dinheiro e cidadania.
Desde 2006, eles acompanham e entrevistam mulheres beneficiárias do Bolsa Família nas regiões tidas como as mais desassistidas do Brasil, cuja população apresenta níveis baixíssimos de escolaridade e onde quase não há emprego, a saber: o sertão nordestino (Alagoas), a zona litorânea de Alagoas, o Vale do Jequitinhonha (MG), a periferia da cidade do Recife, o interior do Piauí e do Maranhão e a periferia de São Luís (MA).
Trata-se de mulheres pobres em regiões rurais do país, que levam uma vida de privação ao acesso de recursos públicos básicos, como educação formal e saúde. Portanto, a ajuda do Bolsa Família, apesar de ser pouca, já representa uma grande diferença no cotidiano de carências dessas mulheres, que estão longe de quaisquer alternativas. A boa notícia é que o dinheiro vem sendo aplicado não só para diversificar a dieta alimentar, mas também para que elas ousem sentir-se mais livres, mais à vontade, mais dignas. Muitas delas estão se permitindo comprar um batom e descobrindo, pela primeira vez na vida, a vaidade que não aprenderam a cultivar. Poucas até estão chegando a tomar decisões complicadas e incomuns para mulheres nas regiões em que vivem, como conseguir o divórcio de casamentos infelizes, de se separar física e simbolicamente do marido opressor e da onipresente estrutura machista opressora. Nota-se um avanço lento e tímido, mas extraordinário.
Apesar de estar promovendo pequenas células revolucionárias pelo Brasil, o Bolsa Família segue sendo alvo de ira por uma parte da sociedade que nunca precisou e não precisará dele. Óbvio que não faltam críticas ao atual funcionamento do programa e à sua inegável apelação eleitoreira, eu mesma observo inúmeros pontos fracos e pontas soltas. Tampouco há dúvidas de que este programa de transferência de renda, sozinho, não resolverá nossos problemas históricos de desigualdade social, mas já constitui um começo, aquela respirada que permite ultrapassar as condições da sobrevivência imediata e arriscar ir além, aquele pontapé inicial que faltava para essa gente poder quebrar um ciclo e reescrever sua biografia.
Chamado por alguns de “Bolsa Esmola” ou “Bolsa Vagabundagem”, o programa Bolsa Família tem estimulado muitos beneficiários, de origem social extremamente desfavorecida, a buscar emprego e, inclusive, a se tornarem empreendedores. Também mulheres estão preferindo abrir mão do auxílio mensal de R$ 166 por uma renda fixa maior de R$ 1 mil, o que as permite ousar e colocar seus sonhos de consumo na lista de objetivos possíveis a serem alcançados ao longo da vida. Onde estão as “acomodadas”?
Fui motivada a escrever este post depois de assistir ao vídeo “Severinas: as novas mulheres do sertão”, da Agência Pública. Focalizando mulheres do interior do Piauí, as cenas conseguem captar a transformação em curso que o dinheiro do Bolsa Família vem possibilitando promover no sertão, num lugar onde impera o pensamento de que “cada um tem que saber o seu lugar: a mulher tem qualidade inferior, o homem tem qualidade superior”.
Para os que precisam ver para crer, o vídeo é de encher os olhos de lágrimas e o coração de esperança:
Fonte: Blogueiras Feministas