Mulheres relatam luta contra o preconceito no Dia contra a Discriminação Racial

Enviado por / FontePor Leticia Gomes, do G1

Ser seguida em supermercados, escutar ofensas sobre seus traços e passar por constrangimentos públicos são episódios em comum na vida de três mulheres negras de São Vicente, no litoral paulista. Neste domingo (21), é celebrado o Dia Internacional contra a Discriminação Racial, e mulheres de diferentes idades relataram ao G1 os impactos do racismo e as consequências de anos de ofensas.

A data foi criada pela Organização Nações Unidas (ONU) após o massacre de 69 pessoas na África do Sul, em 21 de março de 1960, durante manifestação contra o apartheid.

“Estou grávida, e o pior foi uma mulher que me ofendeu em palavras, falando que eu era uma macaca, que estava carregando uma macaca”, relembra a auxiliar de limpeza Geisa Ramos Alves, de 36 anos.

A ofensa foi disparada durante um desentendimento, em fevereiro deste ano. A auxiliar relata já ter vivenciado outros episódios de racismo, como ser seguida em supermercados e receber olhares estranhos de seguranças, mas que esta foi a primeira vez que foi ofendida de forma explícita. Moradora de uma comunidade, ela conta que o mais dolorido foi o xingamento ser voltado à filha, que ainda nem nasceu.

“Me senti fragilizada, minha bebê não pode se defender, fiquei sem chão. Essa foi a pior parte para mim. Me preocupo com a criação dela, em estar com um emocional melhor para poder corrigir essas coisas, ajudar”, desabafa. Geisa não denunciou o caso, por não ter meios e por se tratar de uma comunidade pequena, mas salienta que há a necessidade de reportar esses casos sempre que possível.

A auxiliar acredita que uma data para o combate à discriminação racial é necessária, como forma de esclarecer para as pessoas os desafios vividos por pessoas negras. “A pior coisa do mundo é a gente não ter liberdade de ser quem a gente é. As pessoas acham que racismo é frescura, mas não é, e pode destruir alguém. Ver falarem sobre isso fortalece muito quem passa por preconceitos”, finaliza.

Auxiliar de limpeza relata que já sofreu ofensas racistas  (Foto: Arquivo Pessoal)

Racismo na infância

A estudante Jéssica Silva de França, de apenas 17 anos, conta que lida com o racismo desde muito cedo. Ainda quando criança, ouvia comentários a respeito do cabelo e dos traços, como a boca mais grossa, que a levaram a muitas inseguranças. Com o apoio da mãe e o amadurecimento, ela foi entendendo a questão do preconceito e as consequências que podem causar na vida de uma pessoa.

“As crianças riam e falavam que eu tinha cabelo duro. Sempre foi assim, desde a infância, ao ponto de me questionar por que não nasci diferente, e chorar. Perguntava por que não nasci com cabelo liso, com outra boca. Comecei a me criticar e colocar defeitos em mim mesma”, relembra a estudante.

De acordo com Jéssica, até mesmo um professor a tratou de maneira diferente. Sendo a única negra em uma das classes que estudou, o docente não a respondia e a ignorava, mesmo com os esforços para ter algum retorno. Além do ambiente escolar, ela conta que, em lojas e supermercados, já foi seguida por seguranças.

A estudante ressalta que tem muitos sonhos, e que busca por uma maior igualdade. “A cada dia que passa, os pretos estão mostrando que são capazes de ter um cargo grande. A minha intenção é mostrar que eu tenho meu lugar, não sou maior ou menor que ninguém. Não é a cor da minha pele que vai me impedir de chegar onde eu quero”, salienta Jéssica.

Estudante busca conquistar espaço próprio e relata situações de racismo desde nova (Foto: Arquivo Pessoal)

Confundida com empregada

A técnica em enfermagem Silvia Sacramento dos Santos, de 39 anos, lembra até hoje de um episódio em que foi confundida com uma emprega, aos 16 anos. Ela estava acompanhada do filho e da sogra. A criança nasceu branca, como o pai, e quando a família descia de um ônibus, uma mulher se referiu à técnica como funcionária da parente.

“Estava com a bolsa do bebê e segurando outras duas sacolas. Na hora de descer, falei para a minha sogra descer com o meu filho, para poder pegar as sacolas. Essa moça a chamou e falou que, para me pagar, eu tinha que dar um jeito de pegar tudo. Minha sogra ficou sem graça, e eu desci do ônibus em choque, nunca tinha passado por aquilo”, conta.

Além do episódio do coletivo, Silvia conta que, quando estava grávida do segundo filho, ouviu comentários de familiares do companheiro, que alegaram que não aceitariam se ele não fosse branco, o que fez com que ela saísse da casa. Após anos, ela conta que amadureceu, e que enfrenta essas situações com mais integridade. Mesmo assim, a dor do preconceito permanece.

“Minha mãe conta que, quando trabalhava em casa de família, tinha que entrar pela porta de trás, mas eu era criança e não lembro. Quando eu passei por racismo, aos 16 e 22 anos, comecei a ter medo de me relacionar com as pessoas. Ao falar, é como se eu vivesse tudo de novo”, desabafa.

Silvia é moradora de São Vicente, SP, e relembra episódios de racismo que sofreu (Foto: Arquivo pessoal)

Denúncias

Segundo o advogado Renato Santos de Azevedo, da Comissão de Direitos e Liberdade Religiosa da OAB Santos, há duas formas de denunciar o preconceito racial juridicamente: como racismo ou injúria racial qualificada. Em ambos os casos, a denúncia deve ser levada a conhecimento de um juiz por meio de boletim de ocorrência, que pode ser digital ou presencial, ou por meio de notícia crime feita a um promotor de Justiça. Mesmo com a possibilidade, o número de denúncias é baixo, já que há pouca efetividade.

Uma das dificuldades, explica, é provar o ocorrido. “Temos uma legislação ainda muito pouco usada sobre discriminação racial no Brasil. Mais do que o crime de comportamento ou de costume, o racismo tem raízes na estrutura de nossa cultura, e mesmo aqueles que investigam têm dúvidas sobre a opressão que causa sobre a vítima. É possível dizer que as vítimas pouco denunciam porque há muito poucas chances de haver uma condenação final que satisfaça a sensação de justiça”, explica.

Azevedo reitera que, com a pandemia, e por causa de casos específicos de violência contra pessoas negras que tiveram destaque no último ano, aumentou o interesse pelo assunto, mas ainda há pouca efetividade das denúncias. Ele explica que há sites onde podem ser feitas denúncias, além do Disque 100, para casos de discriminação racial.

Foto em destaque: Reprodução/ G1

+ sobre o tema

Luiza Bairros (1953-2016)

Morreu no 12 de julho 2016 a grande Luiza...

Jurema Werneck: ‘Ser mulher negra no Brasil de hoje é sinônimo de luta’

Em entrevista ao HuffPost Brasil, diretora da Anistia Internacional...

Mulher, negra e feminista: conheça a nova secretária-geral da UNE

Mariana Jorge é estudante de jornalismo da UFBA e...

para lembrar

STF: Audiencia Pública Kabengele Munanga

Ministro Ricardo Lewandowski Chamo agora para fazer uso da palavra...

População Negra, Racismo e Sofrimento Psíquico

O Brasil é um país pluri-étnico que tem em...

Rancor de mão dupla

Um tweet vale mais do que mil imagens? Por Lúcia...

Homem é preso depois de criticar abordagem da PM no Facebook

Rapaz reclamou de blitz em Sarandi e, um dia...
spot_imgspot_img

Homofobia em padaria: Polícia investiga preconceito ocorrido no centro de São Paulo

Nas redes sociais, viralizou um vídeo que registra uma confusão em uma padaria, no centro de São Paulo. Uma mulher grita ofensas homofóbicas e...

Intolerância religiosa representa um terço dos processos de racismo

A intolerância religiosa representa um terço (33%) dos processos por racismo em tramitação nos tribunais brasileiros, segundo levantamento da startup JusRacial. A organização identificou...

Intolerância religiosa: Bahia tem casos emblemáticos, ausência de dados específicos e subnotificação

Domingo, 21 de janeiro, é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Nesta data, no ano 2000, morria a Iyalorixá baiana Gildásia dos...
-+=