Mulheres são maioria entre os gamers, mas jogos eletrônicos continuam reproduzindo machismo

Jogadoras relatam assédios e abusos em ambientes em que a misoginia impera. Há até quem use perfis masculinos para evitar xingamentos

Por Alice Cravo*, do O Globo 

 

O mercado gamer é praticamente todo construído por homens, que a todo momento reafirmam o machismo por meio de personagens sexualizadas, burras ou submissas Foto: Arte de André Mello

“O seu lugar é na cozinha, então fique lá”.”Você só é boa para fazer sexo”. “Cala a boca, você é uma menina. Mulheres não podem falar”. “Direitos das mulheres não existem”. “Sua puta, sua prostituta”. “Você está exagerando como uma mulher”. Essas são algumas das frases que mulheres gamers escutam diariamente quando tentam ocupar o seu espaço em uma das maiores indústrias do mundo. E olha que, no Brasil, elas são 52,6% do público consumidor de jogos eletrônicos, segundo pesquisa de 2016 realizada pela agência de tecnologia interativa Sioux, a empresa de pesquisa especializada em consumo Blend New Research e a Game Lab, divisão da ESPM dedicada à experimentação e pesquisa de jogos.

A comunidade gamer é descrita como “tóxica” e mulheres contam que precisam esconder suas identidades para driblar os assédios e ataques machistas. Enquanto isso, outras decidem abandonar ou se afastar dos jogos. É o caso de Vanessa Nascimento, que há três anos abandonou o seu jogo preferido “League of Legends” (LOL), onde sofreu um episódio agressivo de machismo que a marcou. O motivo? O sinal da sua internet ficou ruim.

— Eu estava em uma partida com um amigo meu, que estava conectado comigo pelo Skype. Quando começou a partida, minutos depois, o sinal da minha internet ficou fraco, travando a partida. Eu perdi o controle do jogo. A única coisa que funcionava era o chat, onde não parava de subir mensagem — conta. — Até esse momento, ninguém sabia que eu era mulher, eu não usava o meu nome. De início, só falavam que eu não podia entrar no jogo se a minha internet estivesse ruim. O meu amigo tentou me defender e entregou que sou mulher. A partir daí, o nível dos ataques mudou. Até de crioula e macaca eu fui chamada, e olha que sou branca.

O LOL é um jogo multiplayer on-line. Isso significa que um jogador depende de outros para completar os objetivos. É considerado um dos maiores jogos on-line do mundo, com campeonatos próprios, e mobilizando muito dinheiro e pessoas.

Nas partidas, as mulheres costumam ser designadas à função de “suporte”, que é vista como secundária. Os suportes apoiam e auxiliam os jogadores com maior destaque nos jogos, como os de ataque e defesa.

— Eu achava que tinha que jogar como suporte porque essa é a parte da mulher no jogo. Com o tempo, eu comecei a questionar isso e fui evoluindo. As meninas têm muita capacidade, jogam até melhor do que os homens — relata Vanessa.

A função de “suporte”, não por acaso, tem ligação direta com a maneira como as mulheres são vistas pelos homens na sociedade. É o que ressalta Aline Pereira, editora de games do site Minas Nerds, uma plataforma dedicada ao trabalho da cultura pop pelo ponto de vista da mulher.

— Eles veem a gente como secundárias na vida e no jogo. As mulheres estão ali apenas para servir. O jogo é uma batalha deles, e nós devemos ficar ali para sermos acionadas em caso de necessidade. Se viramos protagonistas, logo somos atacadas — comenta Aline.

Em campeonatos de LOL, há um momento chamado “pick e ban”, quando uma equipe escolhe quais personagens do time adversário serão banidos da partida. Em fevereiro deste ano, durante um campeonato mundial na Rússia, uma equipe masculina decidiu banir somente os personagens do suporte, deduzindo que as posições estavam sendo ocupadas por mulheres. A equipe foi punida, mas isso não será suficiente para frear a misoginia na comunidade gamer.

É importante lembrar que as mulheres ainda não ocupam o espaço de criadoras — o total de jogos desenvolvidos por mulheres não chega a 10%, segundo a Women Up Games, empresa criada pela programadora Ariane Parra para incluir mulheres no mercado games. Isso significa que o universo dos games é praticamente todo construído por homens, que a todo momento reafirmam o machismo por meio de personagens sexualizadas, burras ou submissas. Acreditem, existem jogos nos quais uma mulher deve ser estuprada para que o jogador consiga completar a missão.

Além disso, elas não costumam ser convidadas para ocupar espaços nas mesas de discussões em fóruns, nem mesmo quando o assunto é o espaço e a representação das mulheres no mundo geek. Quando ganham a fala, é muito comum a presença de homens que a todo momento tentam testar seus conhecimentos e fazer com que a palestrante prove que “merece” estar ali.

O machismo nos jogos, segundo Aline, é mais direcionado. Nos games, o homem está envolvido nas emoções do jogo, que o tornam mais agressivo quando se sente “ameaçado”.

A maneira como meninos e meninas são tradicionalmente educados tem, em parte, a ver com esse cenário. Na nossa sociedade, homens são criados para serem dominantes, competitivos e vencedores. Enquanto isso, mulheres são educadas para serem femininas, donas de casa. Quando crianças, elas brincam com bonecas, enquanto eles se distraem com jogos de estratégia. Toda essa estrutura colabora para a criação de uma ideia coletiva de que a mulher não pertence ao ambiente dos jogos on-line e dos videogames, muito menos à posição de ataque. É o que comenta a psicóloga e jogadora Priscila Sartorelli:

— Quando as meninas começam a querer conquistar esses espaços, os meninos se sentem ameaçados. Eles querem fazer o que foram treinados para fazer: serem melhores que a mulher, reafirmarem o domínio do ambiente. O machismo é uma maneira de tentar fazer isso — afirma Priscila. — Eu já ouvi coisas cruéis, como “mulher só serve para atrapalhar”, e outras que nos diminuem e expulsam. Há misoginia e machismo em todo o mundo gamer.

Para Priscila, a proteção da tela do computador colabora para uma maior agressividade dentro do ambiente dos jogos. O usuário tem a opção de trocar o nome do perfil quantas vezes quiser, sendo quase impossível rastrear e punir os agressores. Isso torna mais fácil a proliferação dos chamados Incels (Involuntary celibates = celibatários involuntários), um perfil comum nos ambientes de jogos on-line. Trata-se, na maioria dos casos, do nerd tóxico, ou seja, homens completamente desinteressantes, viciados em games ou quadrinhos, que insultam, perseguem e ameaçam mulheres nerds. Eles acreditam que merecem mais do que recebem delas.

— A internet ainda é vista como terra de ninguém. As pessoas acham que ali estão protegidas, que podem fazer o que quiserem e que não serão punidas. Ao vivo, muitas vezes, a coragem para dizer essas crueldades não aparece, o agressor fica com medo de ser revelado e banido. No jogo, é só você mudar o seu perfil e pronto: ninguém sabe que você é você — explica Priscila.

* estagiária sob supervisão de Renata Izaal

 

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