Depois de se consolidar como um concorrido espaço de exposição de arte, atraindo mais de 150 mil visitantes em apenas 4 meses de reinaugurado, o Muncab (Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira), localizado no Centro Histórico de Salvador (BA), conduz agora uma importante ação reparatória: a repatriação de obras de artistas brasileiros que circulavam em museus e galerias internacionais. São 750 obras, entre fotografias, quadros, esculturas e tecidos produzidas principalmente por artistas negros, em sua maioria da Bahia.
Cintia Maria, uma das diretoras do Muncab, conta que são peças de valor histórico e artístico inestimáveis de artistas como Jota Cunha, Babalu (Sinval Nonato Cunha), Goya Lopes, Emma Valle, Gil Abelha e José Adário, exímio ferreiro e escultor de peças para usos religiosos de matriz africana.
“São obras que contam a trajetória desses artistas, que dialogam com a proposta do Muncab de valorização da inventividade negra”, destaca Cintia Maria, que é jornalista, escritora e cineasta.
Obras circularam em museus dos Estados Unidos e Canadá
O retorno das peças ao Brasil é fruto do diálogo com a Fundação Convida, iniciativa da historiadora de arte norte-americana Marion Jackson e da artista Barbara Cervenka, que adquiriram as obras durante visitas à Bahia desde o início dos anos de 1990.
“Ao longo de 40 anos essas pesquisadoras mantiveram essa coleção que circulou em museus dos Estados Unidos e do Canadá. Agora elas tomaram o posicionamento de repatriar, entendendo a importância dessas obras estarem no país de origem dos artistas”, disse Cintia, informando que as colecionadoras já realizaram o mesmo movimento de repatriação com uma coleção do Peru.
Há ainda objetos religiosos, trajes festivos, brinquedos e livretos de poesia de artistas nordestinos que ainda não tiveram o reconhecimento devido por parte do Brasil.
O Muncab se prepara para receber as obras fazendo estudos técnicos das condições de deslocamento, climatização e de armazenamento das obras que se encontram em Detroit, nos Estados Unidos.
Nos últimos anos, o debate em torno da repatriação de obras de arte, especialmente aquelas ligadas às culturas afrodescendentes e indígenas, ganhou força em diversas partes do mundo. No Brasil, essa questão ressoa de forma particular, dado o legado histórico da escravidão e o apagamento cultural imposto às populações originárias e afro-brasileiras.
Raízes: começo, meio e começo
Enquanto os tramites burocráticos entre os países acontecem, o Muncab segue a difusão da arte produzida pela população negra por meio da exposição “Raízes: Começo, Meio e Começo” com curadoria de Jil soares e Jamile Coelho, também diretora do Muncab.
Com cerca de 200 obras de 86 artistas de diversas regiões do Brasil e de países como Guiné, Angola, Cuba e Benin, “a mostra transita pelas vanguardas que moldaram as sociedades contemporâneas: a habilidade para registrar acontecimentos e narrar histórias; a intersecção com o misticismo; as expressões artísticas e a resistência sociopolítica dos grupos identitários”, explica Jamile Coelho, que também é cineasta, designer e artista visual.
Em entrevista à coluna, as diretoras Cintia Maria e Jamile Coelho, responsáveis pelo premiado filme Orun Aiyê, entre outros projetos audiovisuais, destacaram a identificação do público com as exposições do Muncab.
“Um público diverso, de visitantes de fora e população local e muitos jovens”, definem as diretoras, vencendo o desafio de manter um espaço de arte e memória fora do eixo de investimentos públicos e privados em cultura e em uma cidade como Salvador, tão marcada por outros atrativos como as praias e as festas.
Foram 3 mil visitantes apenas na abertura da exposição Raízes, há um mês. Já a exposição Um Defeito de Cor, que reinaugurou o museu em novembro de 2023, teve um público de 127 mil pessoas.
Museu é uma reivindicação da comunidade negra
Jamile e Cintia contam que desde 2018 iniciaram ações educativas no museu, entre elas, oficinas de formação e projetos de tecnologia, como o Quilombo Tech, um aplicativo de realidade aumentada.
“Realizamos diversas atividades de dinamização, até que Capinan iniciou o processo de transição para que nós geríssemos o museu”, detalha Cintia, se referindo ao poeta e compositor José Carlos Capinan, que idealizou o Muncab junto a outros intelectuais e artistas negros como Emanoel Araújo, curador do acervo do museu.
O Muncab possui mais de 400 obras raras e históricas, a partir do século XVIII, de modernos e contemporâneos artistas negros como Yêdamaria (1932-2016), Mestre Didi (1917-2013), Rubem Valentim (1922-1991), Agnaldo dos Santos (1926-1962) e Emanoel Araújo (Bahia, 1940-2022).
“O Muncab é um sonho de muitos. Surge de uma reivindicação dos movimentos negros de ter um espaço na cidade mais negra fora da África que abrigue essa diversidade da diáspora africana que ajudou a construir a identidade cultural desse país. O Muncab tem o desafio de dar continuidade ao legado de valorização das matrizes que nos formaram”, ressalta Jamile Coelho.
Valorização da inventividade negra e não da dor
Além do museu atender à demanda pela estética negra ocupar espaços nobres nas artes contemporâneas, as diretoras afirmam que o público se enxerga no Muncab, como um espaço de pertencimento.
“Temos o desafio de transformar o museu em um complexo que dê conta da relevância da cultura afro-brasileira para o Brasil”, completa Cintia Maria.
Para isso, as gestoras traçaram quatro grandes áreas de atuação do Muncab: dinamização, com as exposições temporárias, museu-escola, tecnologias imersivas e exposições de longa duração, em intercâmbio com o continente africano.
“Queremos contar a história negra, por outro viés. Trazer o protagonismo negro e feminino e suas produções artísticas. Mostrar a resistência, a luta, a inventividade e todo esse legado não apenas focando no sofrimento para não entrar numa questão fetichista, que muitas vezes o lugar da dor acaba ocasionando”, enfatiza Cintia.
“É preciso ter também o espaço para falar de dor, não é o caso do Muncab, mas é preciso que o Brasil tenha, sim, um museu para a memória da escravidão, para que não repita essa história. Esperamos que as próximas gerações falarão mais em cura e menos de dor”, deseja Jamile Coelho.
O Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira fica na rua das Vassouras, 25, Centro Histórico de Salvador e funciona de terça a domingo, das 10h às 17h (com acesso até 16h30) e gratuidade às quartas-feiras e domingos. A exposição “Raízes: Começo, Meio e Começo” estará em cartaz até 09 de março de 2025.