O Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), situado em Salvador, será o destino de uma das maiores repatriações de arte afro-brasileira já realizadas. Um acervo de 750 obras, adquirido por duas colecionadoras americanas, Marion Jackson e Barbara Cervenka, ao longo de mais de três décadas, será devolvido ao Brasil. As obras, de artistas negros que dialogam com a cultura afro-brasileira, incluem esculturas, pinturas, trajes e arte sacra, datando desde os anos 1960 até o início do século XXI. A repatriação representa um marco no reconhecimento e valorização da arte afrodescendente, e destaca o Muncab como um dos principais espaços de preservação cultural do país.
De arte marginalizada à valorização internacional: a trajetória dos artistas
Entre os artistas cujas obras serão repatriadas estão Boaventura da Silva Filho e seu filho, Celestino Gama, mais conhecido como Louco Filho. Na década de 1960, Boaventura começou a expor suas esculturas de madeira na janela de sua barbearia em Cachoeira, na Bahia, enfrentando preconceitos. Com o tempo, suas obras passaram a ser reconhecidas, e ele seguiu uma carreira como escultor. Seu filho, que desde criança o auxiliava, também se tornou escultor, adotando o nome Louco Filho.
As esculturas de ambos estão entre as obras que retornarão ao Brasil. Este acervo inclui ainda peças de dezenas de outros artistas do Nordeste, como José Adário, artesão de ferramentas para o candomblé, e Raimundo Bida, conhecido por sua arte naïf. Bida celebra o reconhecimento internacional das obras: “Normalmente, colecionadores compram de artistas falecidos, mas essas colecionadoras investiram em nós, divulgaram nossa arte e agora estão devolvendo.”
O papel da repatriação como reparação histórica
A devolução dessas obras não se limita ao valor artístico, mas carrega um forte simbolismo de reparação histórica. Como explica o antropólogo Marlon Marcos, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), a repatriação é uma forma de corrigir os danos do colonialismo e da exploração cultural. “Essas peças foram, muitas vezes, retiradas de seus contextos de origem em um período de opressão e mercantilização dos povos africanos e afrodescendentes. A devolução é uma maneira de reparar essa história.”
Este movimento de repatriação se insere em um contexto global de devolução de patrimônios culturais, que ganhou força após o assassinato de George Floyd, em 2020, e a ascensão das manifestações do movimento Black Lives Matter. A questão da equidade racial passou a permear o mercado de arte, com museus e colecionadores se sensibilizando para o retorno de obras aos seus países de origem.
Preservação e desafios da logística de repatriação
Apesar da assinatura da documentação legal que formaliza a doação das 750 obras ao Muncab, o processo de repatriação não será imediato. A logística envolve desafios técnicos para garantir a preservação das peças, muitas das quais são sensíveis às mudanças de temperatura e umidade. Uma equipe do museu irá a Detroit, nos Estados Unidos, para estudar as melhores estratégias de transporte, que podem incluir a divisão do acervo em lotes para garantir sua integridade.
A operação conta com o apoio do Instituto Ibirapitanga e da Con/Vida, organização dedicada à cultura e história das Américas, fundada pelas próprias colecionadoras. As peças deverão chegar ao Brasil em 2025, quando o Muncab planeja uma grande exposição para celebrar a repatriação.
Exposição e parcerias futuras: o papel do Muncab na promoção da arte afro-brasileira
Com a chegada das obras, o Muncab pretende realizar uma exposição de destaque, reunindo os artistas cujas peças serão repatriadas e as colecionadoras. Jamile Coelho, codiretora do museu, afirma que será um evento de grande importância para a arte afro-brasileira e para a valorização dos artistas envolvidos. “Será um momento mágico, em que poderemos revisitar a efervescência cultural das décadas de 1980 e 1990 em Salvador”, celebra o artista Raimundo Bida.
Além da exposição, o museu planeja emprestar parte do acervo a outras instituições culturais, tanto no Brasil quanto no exterior, com o objetivo de promover o estudo e a divulgação da arte afro-brasileira. Jamile Coelho destaca a necessidade de inserir essa produção artística no debate acadêmico e cultural. “A arte negra brasileira é ainda pouco valorizada nas escolas de arte, sendo muitas vezes classificada apenas como arte popular. É fundamental que essas obras sejam reconhecidas por sua contribuição intelectual e artística.”
Um marco na história da arte afrodescendente
Inaugurado em 2011 e reaberto em 2022, após três anos de fechamento, o Muncab se consolidou como um dos principais centros de valorização e preservação da cultura afrodescendente no Brasil. A repatriação do acervo reforça a missão do museu de promover a arte negra brasileira e sua história.
Nos últimos anos, a demanda por repatriações de obras e artefatos culturais tem crescido, em resposta a um movimento internacional por reparações históricas. No Brasil, a recente devolução do manto tupinambá, após 335 anos em posse de um museu dinamarquês, marcou um precedente importante. A devolução das obras afro-brasileiras ao Muncab segue a mesma lógica, reconhecendo o papel dessas produções artísticas na formação da identidade cultural do país.
*Com informações de Lucas Fróes, do DW Brasil.