Comunidade quilombola de Marinhos, em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, torna-se ponto de visitação de adultos e crianças e uma atração turística da região
Por Maria Irenilda Pereira, do EM
Uma casa cercada de plantas, onde o som dos tambores recebe os visitantes. A varanda é uma biblioteca de literatura negra, a sala, um museu com peças que preservam a história dos antepassados escravos. Na cozinha, transborda o cheiro de receitas que atravessaram gerações. No ano que marca os 130 anos da abolição da escravatura, o que já foi rebeldia e resistência se consolidou como referência na comunidade quilombola de Marinhos, em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, tornando-se ponto de visitação de adultos e crianças, uma atração turística da região. Ali moram Reibatuque e os pais, dona Leide e senhor Cambão. Uma família que é sinônimo de arte, trabalho em conjunto e da preservação das tradições históricas da comunidade fundada por descendentes de escravos.
Reinaldo Santana Silva, de 42 anos, o Reibatuque, é músico e compositor, nascido e criado em Marinhos. Para ele, a arte vem de berço. “Minha mãe e meus avós criaram o carnaval aqui na década de 1960. Então, sempre estive ligado à música e às manifestações culturais da comunidade, que são o Moçambique e o Congado”, comenta.
“A partir do desenvolvimento desse projeto, eles começaram a se enxergar como negro na comunidade. A menina que tinha vergonha do seu cabelo, agora não tem mais. Começaram a se entender melhor como negro”
Reibatuque, músico e compositor, nascido e criado em Marinhos, responsável pelo projeto Batuquenatividade
Os pais, Antônio Alves da Silva e Leide Santana Silva, também são artistas. Tocam e cantam nos festejos tradicionais e ajudam na produção de eventos que eles mesmo criam para estimular o cooperativismo na comunidade. “Meu pai e minha mãe criaram a festa da colheita, que se chama ‘Quem planta e cria tem alegria’. Juntaram várias famílias, conseguiram a terra, plantam e dividem os alimentos. Criaram a festa que vende parte desse alimento. Aprendi com eles essa questão do coletivo”, elogia.
Marinhos está situada na zona rural de Brumadinhos, no distrito de São José do Paraopeba, ao lado de mais três comunidades remanescente de quilombo: Rodrigues, Sapé e Ribeirão. Foram fundadas por ex-escravos que trabalharam na Fazenda Silva, localizada a poucos quilômetros dos povoados. Hoje, ela é ponto de parada no roteiro turístico de Reibatuque. A ferrovia Paraopeba, que margeia as comunidades, também é uma atração do local. Ela foi responsável por movimentar a economia e gerar emprego para muitos moradores no século passado.
A comunidade, formada atualmente por cerca de 80 famílias, foi reconhecida oficialmente como comunidade quilombola em 2010, por meio de decreto publicado no Diário Oficial da União (DOU), em 4 de novembro. No mesmo dia, as comunidades de Ribeirão e Rodrigues conquistaram o mesmo título. O quilombo Sapé havia sido reconhecido quatro anos antes.
Autoestima e identidade
Em 2012, o trabalho voluntário de Reibatuque de resgatar as tradições africanas e de fortalecer a identidade negra na comunidade, que estava perdendo força com o passar do tempo, se transformou no projeto Batuquenatividade. “A ideia nasceu de uma necessidade. Aqui é uma comunidade quilombola e as crianças não conheciam as tradições do nosso povo. Então, juntei minha experiência como músico, meu amor pela arte, meu orgulho da nossa negritude e fiz o projeto acontecer”, comenta.
O conjunto de ações nos campos da arte, literatura, dança, música e turismo criados pelo artista envolve moradores do quilombo, principalmente crianças e adolescentes, em uma ação social que tem transformado a vida nas comunidades locais. “É um projeto voluntário, sem nenhum vínculo com o poder público ou outra instituição. É assim: vai fazer aula de arte, tem de tirar grana pra comprar o material para fazer as oficinas”, explica ao comentar os desafios do trabalho. Se por um lado, a grana é curta, por outro, a criatividade sobra. Para a oficina de percussão, ele começou a produzir os próprios tambores. “Foi a saída que encontramos para que cada aluno tivesse um instrumento. Deu certo. Hoje, até vendemos alguns aos turistas que nos visitam”, comemora.
O trabalho, segundo Reibatuque, tem aumentado a autoestima dos jovens e fortalecido a identidade social da comunidade. “Foi incrível. A partir do desenvolvimento desse projeto, eles começaram a se enxergar como negro na comunidade. A menina que tinha vergonha do seu cabelo, agora não tem mais. Começaram a se entender melhor como negro”, diz, orgulhoso.
Literatura negra
FOTO: Beto Novaes/EM/DA Press
A comunidade não tem uma escola quilombola, segundo o músico. “As crianças e os jovens daqui estudam fora, em escolas tradicionais. Infelizmente, eles não aprendem sobre nossa história, sobre nossa cultura. Nos livros de literatura, só tem história de brancos, os super-heróis e mocinhos também são brancos. Isso é muito ruim para a criança negra”, lamenta. Para enfrentar o que ele acredita ser uma falha do sistema educacional, Reibatuque montou o espaço dedicado exclusivamente pa ra literatura negra. “Às vezes, as pessoas me procuram para doar livros. Mas, sempre do mesmo. Livros de brancos não nos interessa. Aqui é o espaço de valorização dos nossos”, afirma.
Nos livros acomodados na pequena estante na parede da varanda dos fundos da casa, os super-heróis são negros, a rapunzel é negra. É ali, no cantinho de leitura Quilombê, que crianças pretas do quilombo entram em um mundo que as representa, onde os negros contam e protagonizam as histórias. “Os livros foram uma conquista. Recebemos de doação de uma editora de Belo Horizonte. É tão transformador a representatividade na literatura, que as crianças pegam os livros e querem ficar com eles.”
Café, batuque e prosa
O turismo é outro braço das ações desenvolvidas pelo morador, que se orgulha de ter nascido em terras que seus antepassados negros viveram. Em parceria com a noiva, Jana Janeiro, Reibatuque criou em 2015 o Café, batuque e prosa, roteiro turístico para experienciar a vivência quilombola. “O objetivo é trazer as pessoas para elas verem a realidade dos moradores da comunidade. E a comunidade entender que isso é importante, que ela pode estar vendendo um produto ou uma troca de saberes mesmo”, comenta.
O passeio contempla um dia de imersão. “As pessoas chegam de manhã, minha mãe prepara um café da manhã quilombola maravilhoso com quitandas e chás. É uma oportunidade de apreciarem nosso alimento orgânico, como a broa de fubá feito no moinho d’água. A gente anda pela comunidade, vai em outras comunidades quilombolas vizinhas e mostra a nossa realidade. As pessoas passam a nos respeitar mais e a olhar com amor esse povo.”