Na Chapada do Arapari mulher não aborta, só tem pérca!

Quando saía da casa de Dona Lô, o padre deu de cara com algumas mulheres que lá chegavam para ajudar a preparar a galinha ao molho pardo. Mal as cumprimentou, meio abufelado, disse: “Algumas das senhoras podem dar uma chegadinha na capela pra gente conversar sobre a festa de Nossa Senhora da Imaculada Conceição? Ô Cesinha, pode abrir a capela? Estou indo pra lá”.
Por  Fátima Oliveira
–  Iiiiih, padre, só com ordem de Dona Lô. Eu não comi manga com febre não pra fazer alguma coisa sem ela mandar. O senhor sabe que a capela é dela, desde toda vida. Foi Donana, a mãe dela quem fez, aqui dentro dos terrenos dela. Não sabia não padre? Digo isso porque se ela escorraçou o senhor daqui da casa dela, pode ser que não aceite a sua pessoa na capela também, né não?
E disse isso com um ar de superioridade que até as mulheres, espantadas, se entreolharam.
Rosa, um pouco assustada, tomou a frente das outras e, inquirindo Cesinha, com ar de incrédula, falou: “O que é isso Cesinha, mais respeito com o padre, sô! Tá só querendo ser que nem o ´bunitim das tapiocas’, e é? Onde já se viu não abrir igreja pra padre? Pucardiquê não vai abrir, hein moleque?”
– Ora Rosa, pucardiquê? Ele e Dona Lô viraram “político”*, indagorinha mesmo. Tão adversários “purcadi” de Dilma, minha gente! Não sabiam, não? O bicho pegou e feio pro lado do padre hoje.
E fez um silêncio solene, antes de prosseguir, imitando Dona Lô: “Ô Cesinha, leve o padre até lá na porta, menino! Não tem hospedagem pra ele aqui, não! E que vá comer do bom e do melhor lá na caixaprega, na baixa da égua. É só escolher!” Tão vendo como o bicho é feio? Nem comer do molho pardo hoje, feito no fogão de lenha, que ele gosta tanto, não vai! É, “miou” o padre comer do bem bom hoje. Ela falou, tá falado! Eu, hein, que vou contrariar Dona Lô? De jeito maneira!
Ester Angelini
– Padre, o senhor pode dizer purcardiquê essa pendenga agora com Dona Lô? “Marmoço”, virou maluco, e foi?
– Eita magote de bestas, isso sim! Dona Lô é da mesma laia da Dilma, quem sabe foram até colegas. Não é de duvidar. Não meto a minha mão no fogo, pelas duas. Vocês já perguntaram por que entre os anos de 1969 até 1985 Dona Lô não vivia no Brasil? Os mais velhos sabem que ela nem veio por aqui nesses anos todos. Nem pro enterro do pai ela veio. E olhem que era filha única! Alguém viu Dona Lô aqui no enterro do pai, hein? Como uma filha tão mimada não veio ao enterro do pai? Por que estava proibida de entrar no Brasil naquele tempo! Boa coisa ela não fez… Disso fiquem certos.
–…
– Aqui e acolá se ouvia falar que ela estava na Europa, de papo pro ar. E a mãe dela aqui, todos vocês e os pais de vocês, que viviam da lida na fazenda de Donana, se matando trabalhando ganhando dois tostões pra sustentar a vagabundagem da princesa pelo mundo…
“Padre, padre, não mexa com quem tá quieta debaixo de sete palmos de terra! Donana já morreu, mas nunca nos deixou na mão por aqui. De todas as fazendas da redondeza, era a única que pagava bem, com dinheiro no dia e na hora certa; foi a primeira dessas bandas daqui a ter trabalhador de carteira assinada, desde as cozinheiras, e bote tempo nisso ‘benhí’. Por isso os outros fazendeiros até diziam ela era uma besta parida…” Ponderou Rosa.
– Não se interessam de saber por que Lô, que nunca mexeu com política desde que chegou aqui e agora, esse ano, se soltou que só a “mulesta” na politicada? Dilma, agora a presidenta, pro povo da Chapada do Arapari virou uma rainha, foi? Ou melhor, Dona Lô quer transformá-la em uma rainha, é isso? Vão pensando aí no que lhes digo.
Rosa, que já estava vermelha, as veias do pescoço pareciam querer saltar quando ela falou: “Padre, dobre a língua! As mulheres daqui da idade dela, todas, brincaram com Dona Lô quando crianças. Aliás, todo mundo da idade dela. Mulher e homem. Essa casa merminha aí, donde o senhor foi escorraçado, foi feita depois que Dona Lô nasceu, no lugar da tapera de um pouso de tropeiro do bisavô dela por parte de pai, o velho Chico Tropeiro. Aí foi a primeira casa daqui!”

Interveio Alice: “Donana ficava a maior parte do tempo por aqui pra Dona Lô ter companhia de outras crianças; botou escola e trouxe professora, não só pra filha dela, mas pra criançada toda daqui. Ela poderia muito bem ter levado a professora lá pra dentro da fazenda, mas não! Ela sabia que lá os filhos dos trabalhadores não poderiam estudar. Era muito longe e os caminhos muito ruins. É por isso que Dona Lô vive mais aqui do que lá pra dentro das matas, mesmo hoje em dia tendo estrada boa e a gente não leva nem meia hora daqui até lá. É que gosta mais dessa casa daqui!”

“Muito bem Alice!” Bradaram várias.
Foi o estímulo para ela continuar: “E se alembre: tem filho de caboclo daqui que é advogado, dentista, doutor de muitas coisas, outras são professoras e tudo quanto é ofício que só o saber da leitura dá, que só chegou nesse ponto porque Donana incentivava a caboclada a botar os filhos na escola. É que nem todo mundo queria. Achavam que filho de pobre quando muito precisava só saber assinar o nome. Se soubesse fazer as quatro operações era que nem um doutor. Isso, os machos. Porque as fêmeas, pra muitos pais, ‘dirriba’ da ignorância, nem precisavam disso, não. Diziam que mulher que tem uma leiturinha é um perigo, só serve pra fazer bilhete pra homem. Era ou num era, minha gente?”
Rosa, impaciente, com uma mão na cintura e a outra apontando pro padre, foi ríspida ao falar: “Aqui se triscar em Dilma, se lascou! Triscar em Dilma, nem com um cisco não pode! Não vamos deixar mesmo! Nem Dona Lô e nem nós. Não se arrisque! Não pague pra ver! Esperem um tiquinho aí que vou lá dentro perguntar se Cesinha pode abrir a capela pro senhor se arranchar nela. Se ela disser sim, muito que bem. Se não, é não! E então o senhor se arranque e não venha botar gosto ruim em nosso almoço! Não vê que esse bichim mermim aí (apontando pra Cesinha) tem razão? A capela é da mãe de Dona Lô. Como ela já morreu, tudo é dela! Aqui todo mundo sabe, desde toda vida.
E saiu que nem um azougue, no rumo de dentro da casa, onde encontrou Dona Lô cantarolando baixinho e se embalando em sua cadeira, fazendo de conta que cochilava, como se nada estivesse acontecendo lá fora. Rosa pigarreou. A outra abriu os olhos e ficaram uma olhando pra outra silenciosamente.
– …
– …
– Tá com pena do brôco desse padre, é Rosa? Fique não, que ele não merece. Já conversamos sobre isso naquele dia em que ele disse na capela que Dilma não prestava porque defendia mulher que abortava. E o que eu disse, tá lembrada?
– Que padre tinha de ficar quieto com coisa de mulher. Não se meter. Que aqui na Chapada do Arapari as mulheres não abortam, só têm “pérca” (perda natural). E “pérca” não é aborto, é coisa que acontece.
– Bem lembrado! Onde já se viu que mulher tomar garrafada pras “regras” descerem é coisa de outro mundo? Nunca foi! E que tomar remédio pra fazer descer as “regras” é pecado? Pois muito que bem… E eu pergunto, quem é a mulher aqui que se esfrega em homem que nunca atrasou as “regras” e que não toma seus remedinhos? Ou as mulheres daqui, e de todo canto, não fazem isso desde toda a vida? E purcardiquê esse padreco vem agora com essa? Se ele quer bagaceira, vai ter!
– …
– Fez doce de que para a sobremesa do nosso almoço?
– De mamão verde. Ficou coisa de fidalgo Dona Lô. Do jeitim que o finado seu pai gostava. Fazia tempo que eu não fazia um doce tão bom como o de hoje. Isso eu posso “agarantir”.
– Hem-hem?! Então pode mandar esse padre safado, pior que “gato véio” da “farra véia”, se arranchar lá na capela. Diga a Cesinha que abra.  Não vou negar isso a ele não! Mas que fique sabendo que só vai porque estou deixando, “homessa”! E vamos cuidar do nosso almoço que estou quase com fome. Ô Gracinha, quer que eu pique a cebolinha e o coentro?
E foi para a cozinha, onde pôs um avental, lavou as mãos, pegou a tábua de verduras e foi até à pia, onde picaria o cheiro verde. Nisso, sentiu o alvoroço das mulheres porta adentro. Ela e Gracinha responderam com largos sorrisos aos cumprimentos de todas.
E ali ficaram, na maior animação, dividindo o trabalho: quem faria o arroz, a salada chopska (com as cores da bandeira búlgara) – que tem como ingredientes: tomate; pepino; cebola; pimentão vermelho; azeitona; pimenta vermelha; azeite; sal; vinagre; salsinha; e queijo feta (leite de ovelha ou cabra feito com iogurte e coalho) – até quem colocaria a mesa.
E falavam quase todas de uma só vez. Ela amava aquele burburinho que era pura alegria da mulherada. No quintal, ouvia-se de longe a balbúrdia da criançada brincando de pegador.
– Então, quer dizer que vocês vão à capela conversar com aquele “coiso”, é?
“Ah, se vamos? Vamos sim!”  Retrucou Pretinha. “Mas só depois do almoço, já dissemos pra ele. Coisa ligeira, que depois de encher a pança com galinha ao molho pardo a gente tem mais é que tirar um cochilo. Dona Maria Amélia já disse pra ele que no nosso festejo mandamos nós. Se ele quiser vir dizer missa aqui, muito bem. Se não, vamos arrumar outro padre. Mas a festa será do nosso jeito, como sempre foi. Tem a novena na capela até o dia 7 de dezembro no comecinho da noite; e a missa no dia 8, com os batizados e depois os casamentos. As barraquinhas e outras coisas, sempre demos conta de fazer no sábado e no domingo.”

Dona Lô não escondia o ar de contentamento ao dizer “Isso mesmo! Assim é que se fala! E se ele triscar em aborto, já sabem a resposta na ponta da língua. Né mesmo Memélia? Pro pastorzinho também, né minha gente?”

– O de sempre Dona Lô. É fazer cara amarrada, indignada e dizer bem alto: “Deus me livre e guarde!” E fazer o “increduincruz”. Três vezes! Aqui ninguém aborta. Agora perder, acontece. Descer a menstruação, à força de chás e garrafadas, não é fazer aborto. A menstruação descer, mesmo depois de um, dois, até três meses de “regra atrasada”, acontece, bebendo ou não garrafada! Entonce, tanto faz beber ou não, se descer é o mesmo resultado!

– …
– Beber garrafada para a menstruação descer, pode. Não é pecado. É só inteligência pra saber se virar. Se precisar ir pro hospital, Dona Lô leva, né não? Dilma garantiu, e foi muitas vezes, que não vai prender mulher que tiver feito aborto, vai é atender. Quer dizer, se por acaso acontecer qualquer “disgrota”, é correr “diretim” pro hospital. Sem medo de cadeia.

E todas riam, e como riam! Até mãe Zefinha, a parteira, que estava sentadinha tricotando em sua cadeira predileta, bem na porta da cozinha, doidinha pra fumar seu cigarrinho de palha de milho.

– Quá, quá, quá, quá, se dizer de padre valesse… Ah, se valesse! Minhas “‘oiças”, num tão muito boa, não. Mas deu prumode compreendê! É o que te digo Lô, o que sei aprendi com minha mãe, que aprendeu com a sua mãe, que aprendeu com a mãe dela… E assim em cada tempo cada uma de nós aprendeu com os troncos véio das muié da famía, esse saber que não pode se perder, que é de grande valia pras muié. É pra ser dado e nunca ser vendido. É pra servir a quarquer muié que dele precisar. Garrafada de Zefinha não faia. É tiro e queda!

Em mais de cinquenta anos que assumi o lugar de minha mãe nesse negoço de ajudar as muié, só uma precisou sair daqui, carregada na rede, que era um inverno danado e carro num passava aqui, pra ir pro doutor lá na cidade. Teve uma hemorragia medonha. Nada estancava. Quase morreu. E não morreu! Ainda tá vivinha aí pra contar a história. É a mãe dessa menina “benhí”, a Alice.
Aqui com Zefinha é assim: quer ter muito “fii”, pois tenha que eu aparo. Quer ter só, um? Pois tá. Aparo “tombém”. E quando não quer ter, dou o adjutório “tombém”. Deus me deu dois dons: o de aparar menino e de ajudar a quem não quer ter.  E o quê padre tem a ver com isso?
Nada! Então que vá se lascar! Pastor, do mermo jeitim! As muié toda vida, desde os tempo antigo sabem dessas coisas. Aqui na Chapado do Arapari é assim: mulher só tem o tanto de “fii” que quiser. É um saber que uma vai passando pras outras e assim segue a vida das muié com seus segredos. Donana só teve a Lô. Olhe Gracinha, só queria um, só tem um! Né mermo Gracinha?
E o almoço começava a ser servido… Dona Lô, já quase mortinha de fome, avisou: “Gente, quem tem criança, venha fazer os pratos delas; e depois vamos chegando pra mesa que o cheirinho do ‘dicumê’ tá é bom demais. Vamos falar da nossa viagem pra posse de Dilma, comendo coisa boa. Merecemos. Damos um duro danado pra ter vida boa. Comer galinha ao molho pardo, em muitos lugares chamada de galinha à cabidela, é um supremo prazer. Falando nisso, já arrumei comprador pra nossa porcada. Vai dar um dinheirinho bom. As galinhas, já estão causando briga. Tem gente demais querendo comprar. Mas já disse: só vendemos galinheiro fechado. Brasííííííília, estamos chegando!”

Fonte: Tá lubrinando

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