Inicio esse texto já alertando que não sou historiadora ou geógrafa, mas há questões
visíveis e gritantes no contexto da guerra entre Rússia e Ucrânia que não é preciso ser
especialista nas questões do leste europeu para compreender. A grande Sueli
Carneiro, uma das principais intelectuais do país, já falou uma vez que “entre
esquerda e direita, continua preta”. A célebre frase, inclusive, inspira o título do livro
“Continuo preta: A vida de Sueli Carneiro”, escrito por Bianca Santana.
Voltando ao contexto europeu e parafraseando Carneiro, o que percebemos é que
enquanto ucranianos e parte dos imigrantes se reconhecem brancos, imigrantes de
origem africana continuam negros. E o que isso significa? Que, infelizmente, eles
continuam sendo alvo do racismo. Em situações tão extremas quanta a guerra, você
ser branco, na Ucrânia, lhe dá uma chance a mais de escapar e sobreviver, afinal é
possível sair do país que está sendo alvo do combate com mais rapidez.
Nós temos visto nos últimos dias diversos casos nas redes sociais em que pessoas
pretas relatam o racismo gritante, e revoltante, ao qual estão expostas. São impedidas
de entrar em trens, tendo que dar preferência a pessoas brancas. Pessoas essas, os
relatos também dão conta, que pedem prioridade para os animais de estimação em
detrimento das vidas negras. Blacks lives matter? Really?
Há relatos de casos, também, de pessoas negras que, já dentro dos trens, ouviram que
não deveriam estar ali e deveriam, na verdade, ceder lugar aos brancos. É quase
inevitável recordar Rosa Parks, ativista negra norte-americana, símbolo do
movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. No dia 1º de dezembro
de 1955, Parks entrou para a história ao se negar, na então América segregacionista, a
ceder o seu assento a um branco em um ônibus em Montgomery, no estado do
Alabama.
Meus pais nasceram em 1955 e sempre que eu leio sobre algo que ocorreu a partir
desta data percebo como são casos recentes. A foto de uma criança negra que em
1958 foi submetida à “atração em um zoológico humano”, durante uma feira realizada
na Bélgica no período do pós-guerra, é uma das minhas primeiras lembranças ao
traçar esse parâmetro.
Enquanto escrevia este artigo, voltei a pesquisar sobre esse caso e encontrei uma
reportagem no portal Uol, assim intitulada: “Último zoológico humano ridicularizava
congoleses durante feira na Bélgica em 1958”. Publicada em 2018, a matéria fala
sobre os 60 anos dessa última triste e degradante exibição e traz uma foto atribuída à
reportagem do jornal britânico The Guardian, que abordava o tema no dia anterior.
A fotografia do periódico retratava mulheres e homens, adultos e crianças, expostos a
esta crueldade. Semblantes endurecidos, como não haveria de deixar de ser. Uma
imagem impactante e dolorosa pelo tamanho da desumanidade. Lembrar desses casos
de um passado recente demonstra como o ser humano pode ser cruel, uma crueldade
direcionada pela cor e a origem.
Em um texto recente, aqui mesmo na coluna Negras Que Movem, falei sobre a morte
do jovem Moïse Mugenyi, de 24 anos, assassinado em um quiosque no Rio de
Janeiro. Era congolês, igual às pessoas submetidas ao “zoológico humano” de 1958.
O nome do texto é “Todo dia um golpe diferente. Mas todo dia a mesma dor”. E é
uma dor secular, que já se apresentou nestes dias de guerra na Ucrânia, com golpes
voltados a quem tem a pele escura.
O racismo é tanto que nem a mídia internacional se preocupa em esconder. Vários são
os registros de coberturas em que os repórteres, âncoras ou comentaristas abertamente
falam que essa é uma guerra inimaginável por ser na Europa, por estar vitimando
brancos.
Eu li recentemente em uma publicação nas redes sociais a analogia de que o
holocausto só é tão condenável por ter sido cometido, em sua maioria, contra pessoas
brancas. Foi logo após o comentário de um podcaster que defendeu a legalização de
um partido nazista no Brasil. Imediatamente, e acertadamente, as condenações e
punições no campo moral e comercial chegaram. Todo preconceito é condenável, mas
há situações anteriores em que o mesmo sujeito já havia proferido em seu programa e
redes sociais ofensas racistas contra negros… E nada aconteceu. Como canta Emicida
na múscia “BANG! “, com participação de Adriana Drê: “A dor do judeu choca, a
nossa gera piada”.
Todos os preconceitos são abomináveis e devem ser combatidos. A guerra na Ucrânia
está escancarando ao mundo, da forma mais cruel, como o racismo dificulta até as
chances de se refugiar e sobreviver.
Na paz e na guerra, continuamos pretos.
Minibio
Jaqueline Fraga é escritora, jornalista formada pela Universidade Federal de
Pernambuco e administradora pela Universidade de Pernambuco. Apaixonada pela
escrita e pelo poder de transformação que o jornalismo carrega consigo, é autora
do livro-reportagem “Negra Sou: a ascensão da mulher negra no mercado de
trabalho”, finalista do Prêmio Jabuti, e do “Big Gatilho: um livro de poemas inspirado
no BBB 21”. Escreve por profissão prazer e terapia. Escreve porque respira, respira
porque escreve. Pode ser encontrada nas redes sociais nos perfis @jaquefraga_
(Instagram e Twitter) e @livronegrasou (Instagram).
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.