“Não haverá filosofia africana a partir de um livro da Europa”

Paulina Chiziane

Autora dos livros, Balada de Amor ao Vento (1990), Ventos de Apocalipse(1995), Sétimo Juramento (2000), Niketche (2002), O Alegre Canto da Perdiz (2008), todos escritos no género romanesco, a conceituada escritora moçambicana, Paulina Chiziane, entrou numa crise mental que a levou a passar pelo Hospital Psiquiátrico de Infulene. Depois dessa experiência, publicou, em 2013, dois livros (Na Mão de Deus e Por Quem Vibram os Tambores do Além, o primeiro a reflectir em torno de situações dramáticas pelas quais passam os doentes mentais internados naquele domicílio, que se vêem abandonados pelas próprias família, o segundo a reflectir sobre a desvalorização do curandeirismo e espiritismo africano. O texto que se segue, transcrito e editado pelo Debate, enquadra-se nessa discussão e resulta de uma intervenção sua, quando convidada pela Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane, no âmbito de uma série de debates designadas “Anfiteatro 1502, Ideias em Movimento” que aquela instituição de ensino tem vindo a promover ao longo deste ano. O pano de fundo foi o contributo do continente africano no desenvolvimento da intelectualidade, olhado a partir da Bíblia Sagrada.

“Quando me pediram para falar sobre a identidade moçambicana fiquei a pensar que muitos de vocês estariam a espera que falasse sobre o que se faz em termos de gastronomia e outras manifestações culturais. Mas identidade é, em minha opinião, mais do que isso. É descer às profundezas. Descer às profundezas é falar da Bíblia Sagrada ou um outro tanto número de livros sagrados, o Alcorão, por exemplo, cada um trazendo a sua versão. Por isso, vou descer às origens para entender a partir de que ponto devemos olhar para a identidade africana. A Bíblia Sagrada, um livro que recomendo que o leiam, demonstra claramente o contributo do pensamento africano no conhecimento universal. Ela tem algumas histórias interessantes, a respeito da intelectualidade africana, que eu gostaria de partilhar convosco. Refiro-me às histórias de Abrãao, Moisés e Jesus Cristo e até a história do cristianismo como um todo”.

Abraão

“Na Génese (12:8-10) faz-se a primeira referência a respeito da intelectualidade africana. Narra-se a história de Abrãao, uma figura mítica, bíblica, que, assolada pela fome, se refugiou ao Egipto, junto com a sua bela esposa, Sarah. Chegado ao Egipto, vendeu a sua esposa ao rei do Egipto, Faraó. Quando Faraó descobriu que a bela mulher pertencia ao Abrãao, presenteou-lhe com uma grande fortuna (ouro, prata, escravos, camelos). E, porque Sarah era estéril, Faraó ofereceu a Abrãao uma escrava negra, de nome Agar, com quem teve o primeiro filho, de nome Ismael, aquele que é hoje conhecido como o pai da nação árabe, o pai do islamismo. O que pretendo ressaltar é a importância africana no desenvolvimento da intelectualidade universal. Se olharmos para a Bíblia, de Génesis até Deuteronómio, as grandes referências em termos de espaço são, em primeiro lugar, do continente africano (Egipto, Etiópia e alguns paísesdaquela região), ao continente asiático (Israel), em segundo, e, em terceiro e último lugar, ao continente europeu. Em nenhum momento a Bíblia Sagrada faz referência ao continente americano. Abraão, o considerado pai dos povos tanto no islamismo, quanto no judaísmo, encontrou sobrevivência em África, tornou-se grande patriarca, rico e respeitado no mundo graças a riqueza africana. As religiões islâmicas que conhecemos, hoje, nasceram do ventre de uma mulher africana negra, egípcia”.

Moisés

“Moisés, o autor de Pentateu (os primeiros cinco livros da Bíblia Sagrada), nasceu no Egipto, foi educado por Faraó, escreveu os dez mandamentos da lei de Deus, situado no monte Sinai, Egipto. Portanto, todo o potencial intelectual deste homem aconteceu em África, a terra onde nasceram os seus antepassados. Hoje, as constituições e os códigos penais dos grandes impérios e do mundo moderno repetem a mesma coisa que Moisés disse. Penalizam quem mata, quem rouba”.

Jesus Cristo

“Depois aparece Jesus Cristo. Não há consenso entre diferentes bibliografias sobre onde Jesus Cristo nasceu.Uns dizem que foi em Belém, outros, Egipto. O importante a reter é que ele começa o seu trabalho com os apóstolos em comunicação com o continente africano”.

Os papiros…

“Temos o caso dos papiros. Os papiros surgiram no Egipto. Vocês, como estudantes de Letras, deviam saber isso porque não é possível falar da escrita sem falar desta maravilha da civilização. Então, de que raízes vocês estão a falar quando falam da identidade africana? Eu vos compreendo. Também fui colonizada e ainda vivi a a colonização nos tempos passados. Às vezes aceitar a verdade sobre nós mesmos custa. Durante anos, convenceram-nos de que somos filhos do diabo, não temos alma.O processo de descolonização é um processo às vezes doloroso”.

“Numa primeira fase, esses documentos chamados papiros, antes da chegada do desenvolvimento da tipografia moderna, pela Europa, tinham registos muito importantes. Nos antigos papiros Egípcios, escritos há mais ou menos 3600 anos antes de cristo, o mito da mulher perfeita, a Hermafrodita. Essa mulher chamava-se Hauser, nome que mais tarde evoluiu para Isis. Esta mulher, através do poder do Espírito Santo, gerou um filho. Para dizer que as imagens da Bíblia actual, que se consideram sagradas, já tinham sido escritas nos papiros antigos. Vocês que se dedicam ao estudo da Bíblia deviam saber a imagem da mulher virgem (Maria), que deu à luz Jesus Cristo, não é do cristianismo, foi retirada do africanismo”.

Deus: o maior marido espírito

““Quando falamos do novo testamento encontramos duas figuras muito interessantes. Uma delas chama-se virgem Maria, a outra chama-se Jesus Cristo. Sobre virgem Maria tenho umas histórias muito curiosas para contar, e espero que não se zanguem comigo. Nesta sala (anfiteatro onde decorreu a palesta) deve haver moças lindas e virgens, com certeza. Tão linda, a virgem Maria casou-se com um carpinteiro chamado José. Teve a sorte de ser fecundada pelo poder do Espírito Santo e teve um menino chamado Jesus Cristo. Mas aqui em Moçambique e em África, em geral, marido espírito é um pavor.Quando o marido espírito acontece numa mulher virgem lá vai ela a correr para queixar ao padre e o padre diz que é um mau espírito, culpa os curandeiros. Mas a própria Bíblia mostra que Deus é o maior marido espírito. Tem-se a impressão de que quando o marido espírito é um Deus branco é sagrado, quando é um Deus preto é pecado e o curandeiro é culpado, a tradição não presta, não sei quantos. E vocês pretos desgraçados deitam isso fora”.

Cristianismo  

“Falemos do cristianismo. A seguir falaremos do rastafarismo. A minha intenção, ao trazer esta discussão, não é mostrar até que ponto uma coisa é boa ou má. É trazer notas de reflexão para um intelectualismo seguro. Falo do cristianismo como poderia falar do judaísmo e do islamismo e de outras religiões, porque são elas que governam o comportamento das pessoas. A colonização fez com que olhássemos para a nossa relação com o cristianismo como se ela começasse com a colonização. Mas o cristianismo em África tem mais de 2000 anos. Surge na Etiópia, através de um escravo eunuco que depois de baptizado pelo profeta Filipe criou um movimento cristão. Aliás, hoje sabe-se, a partir das obras de Ki Zerbo, que quando o colonialismo chegou, África tinha a sua História. Mas hoje, por causa dos discursos pró-ocidentais, é difícil convencer a um africano a aceitar que também contribuiu para desenvolvimento da civilização universal e do cristianismo, em particular”.

O rastafarismo…

“Falei do surgimento da ideia de virgem Maria. Agora vou falar do mito da ressurreição de Cristo. Embora não possa afirmar categoricamente, nos antigos papiros existem registos de um deus antigo, egípcio, chamado Ra, que morreu e ressuscitou no terceiro dia. É a mesma figura que encontramos no Novo Testamento, com a morte de cristo. A minha pergunta é: quem copiou ao outro? Hoje temos uma cultura que se chama rastafarismo. O Rastafarismo representa a luta constante pelo resgate da identidade dos africanos. Há quem fala de cristafarismo, porque no nosso passado africano Deus Ra era Cristo. É a imagem deste Cristo que passou da mitologia africana para a mitologia universal”.

Identidade

“Quem somos? Primeiro somos indivíduos. Indivíduo significa indivisível e duo significa dual. Então o indivíduo seria uma dualidade indivisível. Essa dualidade é corpo e alma. Consciente e subconsciente. Material e imaterial. Então, falamos de um indivíduo perfeito quando temos o equilíbrio entre o corpo e o espírito. A definição da Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que saúde é o bem-estar, o equilíbrio entre o corpo e o espirito”.

“Falar da nossa identidade é reconhecer esta dualidade. Não é possível falar da identidade africana sem reconhecer a espiritualidade africana. No passado, a espiritualidade africana era associada ao diabólico, ao supersticioso e magias. Ora, se nós não reconhecemos a nossa espiritualidade, seremos sempre seres sem alma. Quando falamos de religião há muitas pessoas que contam histórias sobre espíritos e formam grupos chamados espiritismos. Eu concordo que haja pessoas especializadas em determinadas matérias, mas discordo que haja separação entre corpo e espírito. Daí existirem grupos que se chamam materialistas, que consideram que o espírito não existe. E depois temos o grupo dos espiritualistas, e estas confusões para quem o espírito é o prato forte. Eu pessoalmente, como pessoa que escreve, de vez em quando escrevo com espiritistas e dizem que eu sou espirita, e quando vou escrever com curandeiros dizem que gosto de curandeiros. Agora estou a escrever com uma Freira, gostaria que dissessem que sou uma Freira”.

“Peguemos uma das grandes civilizações do mundo, a China. A China tem um sistema de adivinhação, que foi desenvolvido ao longo dos séculos, muito próximo ao “Tinlholo”. Foi este sistema de adivinhação chinesa que deu azo à filosofia chinesa. Confúcio é produto de desenvolvimento do “Tinlholo” da China. O taoismo, também um sistema religioso muito importante na China,desenvolveu-se a partir de um sistema de adivinhação semelhante ao Tinlholo”.

“A grande medicina chinesa, a acumputura, desenvolveu-se a partir do sistema de adivinhação chinesa. Este sistema, aparentemente insignificante, quando devidamente tratado dá a sociedade uma nova filosofia, uma visão. Os Iorubas da Nigéria têm um sistema divinatória chamado Tabua Ifa, muito parecido ao sistema chinês, que é um sistema binário. Se voltarmos para a Europa vamos encontrar a trigonometria que se desenvolveu a partir de Pitágoras e que veio da necessidade da interpretação da alma humana. Também utilizavam um sistema de adivinhação, próximo ao Tinlholo. Lançavam as pedras e desenhavam as diferentes linhas. Para dizer que o Tinlholo deu ao mundo muita sabedoria.”

“As advinhas, digamos, encontram-se em quase todas as culturas da humanidade. Arrisco-me a dizer que elas é que contribuíram, em certa medida, para o desenvolvimento da ciência moderna. No nosso meio temos um elemento identitário, o curandeiro. Dentro dos curandeiros existe uma coisa chamada Kulhalhuva, que é também uma arte divinatória. À sua maneira, esta arte abarca muitos saberes e não é um sistema arbitrário como muitos pensam”.

“Estou a chamar a atenção para um processo que se chama leitura”

“Vocês vão às igrejas todos os dias, enchem os salões mas pelo que estou a ver não percebem patavina, senão aquilo que nos mandam entender. A leitura que fazemos não é no sentido de crescermos interiormente e nos libertarmos. Mas também não é fácil termos acesso a essas informações. Muito do que se tem como escritura sagrada foi viciado no processo de tradução, com a máquina tipográfica. Porque se a máquina é minha, quando for a traduzir o conhecimento universal claro que vou fazer de acordo com as minhas necessidades. E as coisas foram sendo deturpadas, recriadas e desenvolvidas. O defeito de muitos intelectuais africanos, hoje, é depender de matérias preparadas por outras pessoas. Durante mais de 500 anos os africanos foram ensinados a renegar-se. Quando se fala de ser negro, africano, conhecer a sua própria cultura, a pessoa salta em respeito dos dogmas que vêm com igrejas, religiões e formas de conhecimento estrangeiras, que ensinam que os africanos estão nas trevas, que o curandeirismo é coisa do diabo e que um bom cristão não deve tocar nisso. Objectivo: esbranquecer as vossas mentes, obrigar-vos a curvarem-se diante deles, esvaziar os vossos bolsos, já pobres de natureza. Mas uma coisa é certa: nunca haverá uma filosofia africana, apenas a partir de um livro da Europa. A intelectualidade africana começa na esteira. Mas informar a um preto sobre a sua própria cultura é uma vergonha, por isso prefiro parar por aqui”.

Fonte: Debate

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