Não pedi sua opinião

Nos dias quentes, todos sofrem. Adoro o verão, mas confesso que gostaria bem mais se a temperatura em dias de trabalho fosse uns 25 graus. E aos finais de semana, quando podemos desfrutar da praia, da piscina, do tanquinho ou até mesmo do bom e velho banho de mangueira, aí o Rei Sol poderia botar pra quebrar. Ou melhor, pra ferver.

por  no BrasilPost

Mas diante das altas temperaturas, nós mulheres sofremos bem mais do que os homens. Não por sentirmos mais calor, acho que isso não acontece. Mas porque basta colocarmos nosso pé para fora de casa para que os insultos comecem. E os comentários machistas não se restringem às ruas, eles seguem desembestados rumo aos escritórios, às firmas, às mesas de bar, às delegacias, às famílias. Enfim, o machismo em nossa sociedade transborda, como já sabemos.

Você acorda e está aquele calor terrível. Você começa a transpirar antes mesmo de sair do banho frio que está tomando. Então decide: saia e blusinha leve para a jornada de trabalho. Ou vestidinho de algodão, fresquinho, pra enfrentar o dia. Você não pode nem imaginar uma calça jeans. Ok, você se veste assim, por uma questão de sobrevivência, e sai pra vida cotidiana. E, ao pisar fora de casa, você já ouve “fiu, fiu”. Ignora. Continua andando e, três marmanjos que estão em um carro, berram: “gostosa!”. Você olha feio. Fica puta. Mas, deixa para lá. Tenta retomar o compasso de seus decididos passos, quando o babaca-mor, sim, aquele paspalho que inventou o “ser babaca”, enquanto você espera para atravessar a rua, chega por trás, bem perto de você e sussurra impropérios que tenho vergonha de reproduzir aqui, mas que, grosso modo, te descrevem o que ele deseja fazer com o seu corpo (sim, com você, ele não quer nada; isso é apenas com seu corpo, que ele pretende usar, de forma auto-satisfatória, como se faz em um estupro). Você morre de nojo e normalmente, se cala.

Por alguns minutos perde todo o brilho. Sente-se mal. Sente-se humilhada. Sente-se, sobretudo, muito fraca e só consegue pensar: “por que eu tenho que passar por isso? Só por que sou uma mulher?”.

Então, você se apressa para pegar o transporte público. E lá estão, novamente, os babacas. Tentando te encoxar, lançando olhares desrespeitosos. Alguns estão, inclusive, acompanhados, mas olham pra você como um pedaço de carne. Ninguém olha para os seus olhos. Quando você sai do transporte e anda até o prédio em que trabalha, os policiais na rua mexem com você. Eles sempre fazem isso. Você já está até acostumada. Para eles, claro, você nunca vai retrucar. E se eles decidem te colocar dentro do carro e fazer com você tudo aquilo que o homem daquela esquina, lá no início da manhã, havia dito? Depois você reclamaria para quem, se são eles a justiça? Se são eles as pessoas encarregadas de te defender?

O que me pega sempre que alguém abre a boca para falar de mim enquanto “corpo” ou “imagem de fêmea” é que eu não estou interessada e nem estou pedindo a opinião de ninguém, de modo que, considero bastante invasivo o fato de receber esses pareceres assim: gratuitamente. Não quero saber o que lhes parece minha bunda, coxa, cabelos ou axilas não depiladas. Não quero saber se te pareço bonita ou feia, magra ou gorda, santa ou puta. Não sou um objeto decorativo destinado a agradar aos outros e nem quero receber a apreciação da “objetização” que essa sociedade machista, que tenta tolher a liberdade feminina do momento em que nascemos ao momento em que partimos, faz de mim. Porque sou muito mais, sou além do óbvio besta dos estereótipos. E só quero flanar por aí sendo eu mesma, sem pressão, normatização e/ou patrulha de quem quer que seja! Afinal, sou uma pessoa e quero ser vista como tal, sem essa obsessão estética tão irritante.

E se é difícil para um homem agir tão civilizadamente, eles podem se espelhar em nós, mulheres, que não andamos na rua olhando pro “pipi” dos caras e nem julgando seus volumes e tamanhos. Poderíamos sair por aí classificando: “pinto pequeno, credo!”, “avantajado, uau!”, “xi, passou da conta, medo!”, mas não o fazemos pelo simples fato de que não objetificamos pessoas. Não as reduzimos a partes, não fazemos metonímia de gente. Preferimos pegar o todo, considerar o indivíduo e flertar com quem nos dá abertura. E posso garantir que funciona bem mais, viu? Porque quantas histórias de cantadas infames renderam uma noitada homérica? Aposto que nenhuma.

Eu, particularmente, não suporto mais esse espaço social no qual somos agredidas física e verbalmente. Em que somos obrigadas a somente poder querer ser menos que o homem. Em que somos julgadas pelo que vestimos, pela forma como nos maquiamos, pelo formato dos nossos corpos. Em que somos estereotipadas pela mídia e por outras mulheres também. Em que somos sempre as culpadas de tudo que ocorre de ruim. Em que homens se sentem no direito de me cumprimentarem olhando para dentro do meu decote. Não aguento mais as definições rasas de que toda mulher quer ser mãe, sonha com o vestido de noiva e é frágil e meiga. Não aguento mais que tentem nos padronizar! E não me venham com esse papo de que a mulher se igualou ao homem. Pura balela. Se isso fosse verdade, não precisaríamos da lei Maria da Penha, da Delegacia da Mulher ou do Dia Internacional da Mulher.

É por essas e outras que eu gostaria de fazer um pedido bem antecipado: em 2015, no dia internacional da mulher, por favor, não me venham com rosas e bombons. Paga o meu em respeito durante o ano todo e estamos acertados, falou?!


 

Redatora, tradutora, roteirista e blogueira

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