Não se nasce racista, torna-se racista: problematizando o racismo à brasileira

negro-branco-asiatico-400x400

Fiz esse texto para tentar abordar um pouco da complexidade do meu caso de RACISMO EM FORTALEZA – Ceará e suas implicações sociais para as identidades de brasileiros(as) negros(as). Começo com relatos de casos racistas para DIZER/MOSTRAR que o que aconteceu comigo não foi algo isolado, mas é fruto de um regime de poder e saber (FOUCAULT, 1996), que no caso do Brasil, foi gestado no período escravocrata, passando por uma reelaboração no Estado Novo (Governo Getúlio Vargas) e por uma forma mais sutil de agir hoje. Estou me referindo à manutenção e constante reelaboração do MITO DA DEMOCRACIA RACIAL que sustenta as práticas racistas em nosso país (Cf. SALES JR, 2006). Esse mito defende (e reproduz) a ideia de que; somos todos mestiços (e/ou iguais em termos de raça), não existe preconceito racial no Brasil”. Vejamos…

Por Marco Antonio Lima do Bonfim para o Portal Geledés

Um amigo prof. do Instituto Federal de Educação do Ceara me relatou o seguinte fato: ele (negro) estava na entrada do seu local de trabalho, sem o crachá da instituição e segurando nas mãos seu notebook; na portaria o guarda o abordou dizendo: “Ei, vai pra onde? De quem é esse computador?” Ele, meu amigo, disse que era professor da instituição e que tinha esquecido o crachá de identificação e que o computador ERA DELE. Uma amiga minha que patina me disse que estava num ônibus (coletivo tal) em Fortaleza, junto com seu marido (ambos negros). Daí na fila para pagar a passagem, antes deles passou um rapaz (pelo que entendi da história, branco) e deu uma nota de 20 reais ao cobrador. O mesmo não verificou se a nota era falsa ou não. Em seguida, quando o marido desta minha amiga foi pagar a passagem deles, deu também uma nota de 20 reais, e segundo ela me disse o cobrador ficou se demorando em tentar ver se a nota era falsificada.

Por fim, o caso de racismo que aconteceu comigo. Na SEXTA-FEIRA, dia 21/08/2015, aproximadamente 1h da manhã (na verdade na virada de sexta pra sábado), após andar de patins com uma amiga. Fomos para o BAR BATATA’S RESTAURANTE BENFICA. N. 2274. (NA AV. 13 DE MAIO. FORTALEZA-CE). ONDE FUI ENXOTADO E QUASE AGREDIDO NESTE BAR. A situação foi essa: eu, negro, com minha roupa de patins: blusa branca muito suja (porque se suja muito a roupa nesse esporte que amo), calça preta e o tênis preto. Daí entrei com minha amiga e outra amiga dela no bar. Eu fui na frente e fui ao balcão e pedi um drink. A pessoa (um dos donos) olhou para mim e disse que não ia me servir. Não entendi. Insisti muitas vezes. Sentei a mesa e ele finalmente me serviu. Assim que sentei, o segurança do bar me disse: NÃO TEM BEBIDA PARA VC! PODE SAIR DAQUI! Eu continuei sem entender. Tomei o drink e paguei no DÉBITO e pedi outro. Daí tanto o dono como o garçom me AGREDIRAM NA E PELA PALAVRA E o garçom me puxou da cadeira e me ENXOTOU BAR A FORA. Na frente de todos e todas. SEM MOTIVO ALGUM.

Na hora em que o garçom/segurança me empurrava pra fora eu ainda disse: “Ei sou Doutorando em Linguística/Letras e sei como recorrer”. Ele disse: Não quero saber. Vale ressaltar que eu frequentava este espaço (com outras roupas, estava, digamos na aparência de pessoa. enfim…). Eu poderia citar também o recente caso de racismo referente à atriz Taís Araújo, os casos de racismo no Futebol e também no facebook (Cf. DAMO, 2010; PAIVA; BONFIM, 2015) para dizer que EXISTE RACISMO SIM NO BRASIL! EXISTE RACISMO SIM AQUI NO CEARÁ! E TEMOS QUE TORNAR ISSO VISÍVEL E AO MESMO TEMPO COMBATER TAL FORMA DE AGRESSÃO AO SER HUMANO.

Os fatos narrados configuram a ocorrência do crime de racismo ou injúria racial. O primeiro, previsto na Lei nº 7.716/1989 e o segundo, no art. 140, § 3º, do Código Penal. Enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça.

Vejamos o que dispõem as normas penais:

Lei nº 7.716/1989:

Art. 5º Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador.

Pena: reclusão de um a três anos.

Código Penal Brasileiro:

Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o

decoro:

(…)

§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou

portadora de deficiência:

Pena – reclusão de um a três anos e multa.

Para finalizar gostaria de destacar que o mito da democracia racial, que, repito, defende e reproduz a ideia de que somos todos mestiços, não existe preconceito racial no Brasil” autoriza e legitima VIOLÊNCIAS como as descritas acima. Para Tavares e Freitas (2010), o racismo encontra no modelo eurocêntrico, branco, heterossexual, capitalista, o seu sustentáculo.

Desse modo, parafraseando Simone de Beauvoir (1970), entendo que não se nasce racista, torna-se racista. Esse tornar-se, no contexto do Brasil está relacionado com o racismo cordial. Segundo o prof. Dr. Ronaldo Sales, no seu texto Democracia racial: o não-dito racista publicado na Revista da USP TEMPO SOCIAL (Sociologia da Desigualdade), o RACISMO SE REPRODUZ POR MEIO DE UMA CORDIALIDADE – RACISMO CORDIAL (pacto de silêncio sustentado pelo mito da democracia racial). A cordialidade, por meio do não dito racista (estigmas, piadas, injúrias raciais), faz com que a discriminação social não seja atribuída à raça[e já se desconstruiu a ideia de raça como pigmentação de pele. Raça é uma construção social] e, caso isso ocorra, a discriminação seja vista como episódica e marginal, subjetiva e idiossincrática (p. 232).

Diante destes fatos, convido todos e todas para colaborarem com essa luta DENUNCIANDO SEMPRE QUALQUER FORMA DE DISCRIMINAÇÃO E OPRESSÃO (seja por cor, raça, orientação sexual, classe social, orientação religiosa, etc), principalmente contra a juventude negra que reside nas periferias de nossas cidades,visto que o racismo tem acontecido com muitos negros e negras no Ceará (vide também o caso de racismo institucional do estudante de Engenharia de Pesca, Lucas Aquino, na Universidade Federal do Ceará).Temos que visibilizar para toda a sociedade brasileira, quiçá, de cearense, que o racismo existe sim e é velado. Porque ontem fui eu, homem, negro, doutorando em Linguística e patinador, mas amanhã poderá ser você.

Marco Antonio Lima do Bonfim

Membro do Fórum de Estudantes Negros/as em combate ao Racismo na Universidade Federal do Ceará Doutor em Linguística Aplicada


REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. Difusão Europeia do Livro: São Paulo, 1970.

BONFIM, Marco Antonio; PAIVA, Geórgia. Violência Linguística e (Im)polidez no Facebook: analisando práticas racistas no futebol brasileiro. In: E-book/ 2º Workshop Internacional de Pragmática. Curitiba: Biblioteca de Ciências Humanas, UFPR, 2015, p. 27-39.

DAMO, Arlei. Os racismos no esporte. In: MANDARINO, Ana Cristina, GOMBERGUE, Estélio (Org). Racismos: olhares plurais. Salvador: ED. UFBA, 2010.pp. 155-178.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Trad. L. F. Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996. 15ª ed.

SALES JR, Ronaldo. Democracia racial: o não-dito racista. Revista Tempo Social. v.18, n.2. São Paulo, Nov.2006.

TAVARES, Júlio; FREITAS, Ricardo. Mídia e racismo: colonialidade e resquícios do colonialismo. In: MANDARINO, Ana Cristina, GOMBERGUE, Estélio (Org). Racismos: olhares plurais. Salvador: ED. UFBA, 2010.pp. 205-221.

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...