Em 1995, eu estava no mestrado (…), um colega de turma, branco, disse depois de um seminário que eu fiz: ‘eu sempre achei judeus bons economistas, alemães bons filósofos e negros bons músicos. Mas, você me surpreendeu. (COLEMAN, 2021, p.187).
A época era comum decidir os reveses na briga, mas sempre respeitando quem quer que fosse, até os adversários. Ouvia de sua mãe com braço forte: “preto deve ser exemplar” e de suas palavras, mãe gentil, ecoavam amor e esperança, um raio vivido. Deveria ser “o melhor” ou ficar entre os melhores. Para que o racismo não o atingisse em demasia, deveria demonstrar impávido colosso. (ROMANA, 2021, p.30).
Aprendi algumas habilidades que fizeram de mim um bom profissional, um razoável militante social, e até um bom amigo para os meus amigos, mas como esposo meu aprendizado fora deficitário. (COLEMAN, 2021, p.45).
Dores pautadas pelo racismo velado/explícito; mas, também, o incentivo, as relações de afetos, os cuidados, as trocas de base familiar, o reconhecimento. Toda esta gama de emoções, sentimentos, lembranças, ensinamentos, emergem no livro “Filhos, pais e avôs: narrativas de presença e poder”, coordenado por Sandra R. Coleman lançado recentemente. Primeiro volume que inaugura a Coleção Presença e Poder, em parceria com a Editora CRV, o livro objetiva a promoção de um diálogo geracional entre biógrafas – mulheres negras – e biografados, de diferentes partes do Brasil. A obra traz o prefácio do filósofo, autor de livros e professor Renato Noguera (também biografado pela coordenadora da publicação); apresentação da mestranda em Saúde Pública Roseane Corrêa; e o posfácio do escritor e compositor Altay Veloso. Coleman, também convidou algumas pessoas – considerada, por ela, como celebridades – para se expressarem, por meio de frases/parágrafos, sobre o livro. São eles: Vanda Ferreira, Josiane Climaco, Lesley Ferracho, Ines Dias, Miro Nunes, Marcus Vinicuis, eu (Sandra Martins) e a Carla Silva que escreveu a orelha.
Colocar em prática o respeito à ancestralidade, aos mais velhos, com troca de experiências respeitosa numa relação dialógica, foi e é a intenção de Sandra Coleman ao investir no registro de narrativas de grupos denominados por ela, de “detentores de sabedoria”, ou melhor, “nossos mais velhos”. Eles são “aqueles que lutaram e continuam lutando por nossos direitos. Homens que fizeram parte do Movimento Negro, em especial do Rio de Janeiro; mas, também, intelectuais de diversos naipes de outras regiões do país”, afirma a escritora.
No prefácio, Renato Noguera observa que as biógrafas captaram “a perversidade dos sistemas de opressão que tentaram pintar os personagens do livro como vilões mais sanguinários da história do Brasil” (NOGUERA, 2021, p.15). Não mais sem rostos, homogeneizados, todos em um, impostos pelo patriarcado racista: elas se revoltaram. Surgem narrativas fortes, leves, humanas.
Os olhos representados nas capas dos livros são de biografados
Quem tem juízo, obedece!
SANDRA MARTINS – O que a motivou a desenvolver projetos sobre memória de pessoas negras brasileiras?
SANDRA COLEMAN – Sou oriunda de família pobre, nascida na cidade de São Gonçalo, no Rio de Janeiro. A em uma organização não governamental antirracista. Entretanto, eu não era uma ativista e, sim, uma trabalhadora que teve a oportunidade de estar no lugar certo na hora certa: e, aprendi muito. Tempos depois, conheci meu marido, um professor universitário afro-norte-americano com quem estou casada há quase duas décadas. Atualmente, moramos em Atlanta, GA. Resolvi investir na minha formação: inglês, graduação, mestrado; e, agora, nesta proposta editorial de narrativas minibiográficas de nosso povo preto.
SM – Como começa sua jornada através de narrativas de pessoas negras?
SC – Em 2017, organizei uma exposição sobre mulheres negras brasileira na biblioteca da Universidade do Estado de Nova York – SUNY New Paltz, onde fazia mestrado em Estudos Profissionais com concentração em Educação Cultural, e fizera bacharelado em Artes com concentração em Espanhol. A exposição era uma forma de “afrontamento”. Era apresentar aos estadunidenses que somos muito mais do que as congeladas imagens estereotipadas secularmente. Somos múltiplas, inteligentes, belas e assumimos importantes papéis em espaços institucionais brancos no Brasil. A exposição foi muito bem recepcionada e, a partir dela comecei a pensar em registrar aquela experiência assim como a daquelas mulheres negras. Entre várias trilhas, decidi que investiria numa publicação cuja escrita fosse coletiva. E, assim nasceu, em 2020 – o ano da explosão pandêmica –, o Mulheres Negras Brasileiras Presença e Poder, da exposição ao livro, publicado pela Editora CRV, um livro que traz a narrativa de 39 mulheres negras brasileiras. Depois, decidi que era a vez de escrever ou trazer minibiografias de homens pela mesma editora.
SM – Qual a razão deste livro sobre homens negros?
SC – A razão do livro é trazer a narrativa de vida de 31 homens negros, através da voz de mulheres negras, fazendo, às vezes, um diálogo geracional entre biógrafas e biografados de diferentes partes do Brasil. Colocando em prática o respeito à ancestralidade, aos mais velhos, uma troca de experiência respeitosa.
SM – Quais critérios utilizou para a seleção dos personagens?
SC – A seleção foi difícil, mas eu tinha que decidir. E, para isso lancei mão dos mesmos critérios que usei na exposição e no livro sobre as mulheres: “meu coração e minha intuição”. Parti para as minhas redes sociais. Não foi uma tarefa fácil. Mas, fui seguindo o tal do “coração”, e, ainda, tive outra ajuda: “os meus sonhos”. Acho que preciso parar de sonhar! Além do mais, algumas vezes acordava no meio da noite lembrando de alguém (eu durmo com um bloco e caneta ao lado da cama). E, assim fui completando a minha lista, que chegara a 40 nomes. Mas, publicados, somente 31.
SM – Quem são eles, quais suas áreas de atuação?
SC – Os participantes são homens negros de diferentes idades, classe social e nível de escolaridade. Tem um grupo que eu chamo de “os detentores de sabedoria” ou “os nossos mais velhos”, aqueles que lutaram e continuam lutando por nossos direitos. Homens que fizeram parte do Movimento Negro, em especial do Estado do Rio de Janeiro. O livro traz um total de 31 narrativas. Os participantes são assim distribuídos: professor (universidade, rede pública municipal e estadual), autor de livros, advogado, cantor, executivo, quilombola, engenheiro, funcionário público, artista plástico, jornalista, estudante (mestrado/doutorado), profissional liberal e outros.
SM – Quem são as mulheres que os escutam?
SC – Todas as minibiografias são produzidas por mulheres negras. Eu, como organizadora, escrevo a de 13 homens; a jornalista Sandra Martins, cinco; a doutoranda Ana Gomes, duas; e a nossa recém-graduada em Direito Ialodê, dois personagens; e, cada uma das outras “autoras” têm uma minibiografia.
SM – Quando e como concebeu esta proposta?
SC – Este livro surgiu de um sonho. Era uma manhã de segunda-feira, dia 30 de novembro 2020. Eu havia passado a madrugada acordada pensando na entrevista para cidadania americana que teria as 7:45 da manhã. Toda produzida, lindíssima, fui para a entrevista. Após duas horas, entre conversas e papéis, finalmente recebia minha cidadania americana. Voltei para casa, deitei-me na poltrona. E, exausta, mergulhei em um sono profundo. Sonhei aquele sonho que você desperta vendo o sonho na sua frente.
Levantei-me e fui direto para o computador pôr o sonho em prática. No sonho, aparecia um homem negro, alto, forte, bonito que dizia: “escreve um livro sobre os homens”. É claro que interpretei isso como uma ordem. E, como diz o ditado popular: “quem tem juízo obedece”.
Fui pensando em adotar o mesmo formato que utilizei ao organizar o das mulheres: ter algumas mulheres escrevendo sobre os homens, e depois ter os homens escrevendo sobre eles. Porém, pensei muito, amadureci a ideia e decidi que queria fazer algo diferente. Pensei em ter mulheres escrevendo, trazendo à tona a narrativa dos nossos homens, dos nossos pretinhos, sejam eles: filhos, pais e avôs. Então decidi convidar para a escrita, algumas mulheres que participaram do livro Mulheres Negras Brasileiras Presença e Poder, da exposição ao livro, outras que faziam parte do meu círculo de amizades. Teve, ainda, o caso da Sonia Arruda indicada pelo próprio biografado dela, Nelson Narciso, e o de Marize Conceição que eu convidei para escrever a bio do Semog.
SM – Houve mudanças no time das autoras?
SC – Houve mudanças sim. Infelizmente não deu para contar com todas que participaram do livro das mulheres: os motivos eram os mais variados. Mas, o principal era o tempo que algumas não tinham. Então resolvi dar oportunidade a outras.
SM – Quanto aos seus entrevistados, algum obstáculo que impedisse a coleta dos depoimentos?
SC – Obstáculos sempre têm. Muitas pessoas têm dificuldade de falar da sua própria vida. Alguns ficaram impactados com a proposta, e levaram algum tempo para conseguir responder as minhas perguntas. Alguns tiveram que recorrer a familiares para saber sobre os antepassados. Por exemplo, um dos meus depoentes ao procurar saber sobre os avós, encontrou um primo no interior da Bahia. Esse primo foi até a igreja na cidade de Jacobina e conseguiu a cópia da certidão de casamento dos avós de 1916.
SM – A produção de narrativas no Brasil, ao menos na última década, tende a enfatizar a mulher negra. Quanto aos homens parece que a aposta é temática – masculinidade, por exemplo. Entretanto, este livro apresenta o sujeito em outro angulo (ou outros ângulos). Parece que você quer mostrar que atrás de uma identidade externa há um sujeito ímpar, delicado, humano, ou seja, uma humanidade e fragilidade que compõe este depoente. Seria isso?
SC – Então, a proposta do livro é trazer à tona a origem desse homem, como ele chegou até aqui, quem foram seus antepassados, como eles foram moldados. Para os meus entrevistados eu fiz mais ou menos 14 perguntas, e em todas as narrativas que escrevi tentei falar o máximo que pude sobre os antepassados. Encontrei alguns relatos dolorosos, inclusive alguns não publiquei.
SM – Você abriu uma coleção. Será sempre neste prisma mulheres dialogando com os depoentes?
SC – Sim, essa é a minha ideia inicial, mulheres negras escrevendo. Mas… pode mudar, sou sempre aberta a mudanças.
SM – Mulheres e homens falam, e o que virá depois?
SC – Surpresa!!! Mas já estou trabalhando no próximo.
SM – Como está a divulgação do livro que abre a coleção?
SC – Por enquanto, um trabalho de formiguinha; o “boca-a-boca”, lives, redes sociais, enfim, um trabalho que desenvolvo com a ajuda de muitas pessoas que acreditam que sonhos podem ser realizados. Ainda acredito no Ubuntu, no “uma sobe e puxa a outra”, no “juntos somos mais forte”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COLEMAN, S. R. Renato Noguera: um filósofo contador de história. In: COLEMAN, Sandra (org.). Filhos, pais e avôs: narrativas de presença e poder. Curitiba: Editora CRV, p. 187, 2021.
COLEMAN, S. R. Sou feliz e mais que vencedor: Helio Santos do Rio. In: COLEMAN, Sandra (org.). Filhos, pais e avôs: narrativas de presença e poder. Curitiba: Editora CRV, p. 45, 2021.
NOGUERA. R. Por uma ética dos afetos. In: COLEMAN, Sandra (org.). Filhos, pais e avôs: narrativas de presença e poder. Curitiba: Editora CRV, p. 15, 2021.
ROMANA, P. Meu Highlander nacional brasileiro. In: COLEMAN, Sandra (org.). Filhos, pais e avôs: narrativas de presença e poder. Curitiba: Editora CRV, p. 30, 2021.
¹ Jornalista, graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo pela FACHA (Faculdades Integradas Hélio Alonso). Mestra em História Comparada pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Integrante da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros) e da ABHO (Associação Brasileira de História Oral).
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.