O livro é de Paulo Coelho, “Nas margens do rio Piedra, sentei e chorei”, e li tal obra na minha adolescência, embora do conteúdo não me lembre, somente do título que me marcou. E ele me veio em mente depois de uma conversa com uma brasileira aqui na França, branca, da elite paulistana, filha de empresário de São Paulo e habitante da Faria Lima. Podemos imaginar o perfil! Ela defendia a ideia de que o melhor modelo econômico, social e político é aquele estadunidense. Seus argumentos foram os seguintes:
“(..) lá, as pessoas pagam poucos impostos, o salário é alto e depende de cada um economizar e investir como quiser, arcar com os próprios gastos como saúde, educação, segurança. Depende da cabeça de cada um, depende da cabeça. Quem não tem, fica sem, e não deve esperar nada do Estado. Depende de cada um! Cada um! ”
Essas palavras ressoaram em mim, por dias, meses. A Partir de então, comecei a pensar em pessoas reais, histórias de gente como eu, negros, negras e pobres, que não “conseguiram”, que “fracassaram” e nas margens do capitalismo ficaram, chorando ou tentando “banhar” algum dedinho nas suas águas, mas as correntezas são mais fortes, e haja “cabeça” para aguentar a fúria e a violência do “rio”, que, sem piedade, lança para fora aqueles e aquelas que não nadam na mesma direção e expulsa os que possuem um ritmo mais lento, os que param um pouco para recuperar o fôlego e respirar, os que perdem a hora por tantas razões com as quais ninguém se importa.
Esse homem e essa mulher liberais devem ser super-heróis: um super-homem e uma mulher maravilha que não contam com os obstáculos no meio do caminho, com situações imprevisíveis, com doenças, problemas emocionais, traumas ou dores que fazem com que o “rio” nos jogue para fora dele, a qualquer momento. Para ilustrar essa analogia com o capitalismo, conto a histόria de duas mulheres que conheci em Goiânia, no período em que morei nas terras do pequi, da pamonha, do lobo-guará, tão magro e maltratado na nova nota de 200 reais, símbolo de um dos piores governos para os pobres desse país.
Uma delas, negra, assim como eu. A diferença entre mim e ela, é que eu nasci em Minas Gerais, na periferia de Belo Horizonte, em outra configuração de família, e ela, no interior do Tocantins. Em comum, ambas trazemos marcas da escravidão, presentes no corpo e na alma. O pai dela, homem negro, suicidou-se quando ela ainda era pequena. Eu imagino a dor desse homem, a terceira geração de libertos, sem “técnicas sociais”, como lembrou Florestan Fernandes, sem capital social e sem instrumentos para ler e elaborar a própria dor; não suportou e partiu, assim, dessa forma. O irmão dessa mulher também seguiu o mesmo caminho que o pai, cometendo suicídio na juventude. A mãe, também negra, enlouqueceu e as três filhas tiveram que lidar com o que sobrou da família: rupturas, traumas e uma vida dura que as esperou pela frente.
Essa mulher foi dada à avó e depois a uma senhora para trabalhar como serva da casa. Esperou muito para se casar, e, ao pensar que havia encontrado um companheiro para seguir o caminho junto, esse a deixou assim que soube que ela estava grávida.
Anos mais tarde, casou-se e teve mais um filho. Com o passar dos anos, o marido revelou-se violento e se afundou na bebida. Com dois filhos, tomou coragem para se separar, denunciar a agressão e, sob ameaça, precisou partir, ausentar-se por um tempo da cidade. Atualmente, cuida das crianças sozinha, faz faxinas para ter tempo de estar com eles, não é assegurada no trabalho, não tem direito à férias, tratamento de saúde adequado, provavelmente não se aposentará, e tampouco tem meios de cuidar das dores que carrega. De vez em quando, ela se desespera, e nesse desespero, perde tudo e precisa recomeçar sempre do zero. ‘É cansativo! ”, disse-me certa vez.
Outro dia, ela contou-me que, sem creche de tempo integral, o filho de 5 anos fica aos cuidados de uma senhora e um dia o menino chegou em casa dizendo que a cuidadora não o chama pelo nome, mas o trata por “coisa”. Muito chateada, ela chorou ao telefone. Naquele momento, eu, que tenho direito a uma escola pública de tempo integral para meu filho, que sou assegurada no sistema de saúde francês e que não estou no nível da luta pela sobrevivência; logo, meio fora da realidade de milhões de brasileiros, disse-lhe: “ conversa com essa mulher! Ela não pode continuar dizendo essas coisas! Fere a autoestima do menino! ”. Minha amiga retrucou “eu não posso dizer isso, pois romperia o único ponto de apoio que eu tenho, e sem ela, não daria para eu trabalhar”.
Ah! os indivíduos do capitalismo! Dentro desse sistema não cabe vidas reais, pois essas políticas neoliberais não contam com nossas dores, nossas histórias e nossas marcas, com o que cada um pode ou não suportar, com a nossas subjetividades. Esse homem e essa mulher do neoliberalismo são INFALÍVEIS!
Vejo milhares de palestrantes renomados no Brasil, chamados de “intelectuais”, “carecas de saberem” o quanto o mundo é desigual, pregarem coisas do tipo “A felicidade está dentro de você”, “Como obter sucesso”, “10 coisas para vencer na vida”, “Quem quer, consegue”. Autoajuda, minha gente, não é para nós: pobres, negros e trabalhadores! Autoajuda é para uma elite branca e uma parte da classe média que pensa fazer parte dela. Utilizam- se desses discursos rasos e receitas baratas que não são aplicáveis na vida da maioria do povo brasileiro. Para nós, essas bobagens não funcionam! Nossas vidas extrapolam esses manuais embalados em pacote de “intelectualidade”, pois vazam e desafiam qualquer “homem do saber”, branco e privilegiado, a aplicar seus conselhos em realidades como essa da minha amiga.
A outra história é de uma mulher, pobre e massacrada pela vida, que encontrei em um assentamento de Sem Teto em Goiânia. Órfã muito cedo, ela foi parar na casa de uma família “benfeitora” aos 9 anos e transformada em empregada. Nunca recebeu salário, não tinha direitos e perdera sua infância. Saiu dessa casa já adulta, sem um tostão no bolso, e casou-se. O marido bebia muito, e, certo dia, foi embora.
Vendo-se sozinha com os filhos pequenos, ela entrou em um programa de casas populares. Sem ter com quem deixar os filhos para trabalhar, incumbiu, ao mais velho, a tarefa de cuidar da irmã de 6 anos. Um dia, entraram no seu barracão, arrastaram a menina e tentaram estuprá-la atrás da casa. Mas como a menina, em choque, defecou no momento, o estuprador a deixou ali, nua, naquele estado, e fugiu.
Ao saber do ocorrido, a mãe pegou os filhos, deixou para trás a casa, com tudo dentro e saiu vagando por esse mundo, até se instalar novamente em uma ocupação. Os palestrantes do “sucesso” e do “depende de cada um” se perguntariam: “Ah! mas porque ela não pensou direitinho antes de deixar tudo para trás? ” ou “se tivesse escolhido bem o homem para casar não estaria nessa situação!” Pois é, troca de lugar com ela, para você saber a resposta.
Depois do ocorrido, ela, acreditando ter se estabelecido na vida, vê-se novamente em outra situação de penúria: o governo estadual ordenou que tratores destruíssem a ocupação e a polícia entrasse para matar. E foi assim que ela perdeu todos os móveis e eletrodomésticos que tinha acabado de comprar. Alguns anos atrás, recebi a notícia, publicada no G1, com a manchete: “MULHER QUE ARRANCOU OS DENTES POR FALTA DE ATENDIMENTO DIZ QUE RECEBEU PROPOSTA PARA FALAR BEM DA SECRETARIA DE SAUDE”. Era ela. Após várias tentativas frustradas para conseguir um atendimento odontológico pelo Sistema Único de Saúde (SUS), não suportou a dor de dente e “resolveu” o problema sozinha, arrancando-os com alicate. Capitalismo não é para gente não, meu povo!
Eu nasci na periferia de Belo horizonte, consegui estudar, fazer faculdade, mestrado e doutorado, sempre em instituições públicas. Superei as necessidades mais elementares e consigo elaborar minha experiência, minha vivência e tenho instrumentos para lidar com a dor. Não posso me colocar como exemplo de quem “venceu na vida” porque “tive cabeça” ou porque “me esforcei”. Foram diversos os fatores que me fizeram chegar até aqui. Sozinha, eu não teria conseguido. Se eu dependesse somente da “minha cabeça”, tampouco. Sem boas escolas públicas e gratuitas não teria conseguido. Sem hospitais públicos teria morrido logo na infância. Sem um conjunto de coisas e pessoas que foram aparecendo no meu caminho, eu teria me partido ao meio, morrido, como grande parte dos meus amigos e colegas de infância da periferia. Eu não me sinto “vitoriosa” nesse sistema! Sinto que preciso lutar a cada dia para que a correnteza não me arraste para a margem. Isso não é qualidade de vida! Isso não é vida plena! É cansativo, exaustivo!
E quando muitos daqueles e daquelas que estão na luta por justiça social propõe “AQUILOMBAR-NOS”, não é para voltar a um tempo utópico, à condições de vida piores do que encontramos, é para resgatarmos espaços de cura, de vida alternativa a esse sistema, um senso de pertencimento e de comunidade, uma rede de suporte, uma fonte onde revigorar e “desaguar nossos dons”, sentir-nos pertencentes a um lugar, à pessoas, a um projeto, como nos lembra Sobonfu Some, em “O espírito da intimidade”. Precisamos de um outro mundo que nos caiba.
O capitalismo e sua política econômica neoliberal nos enxergam como seres descartáveis, matáveis, cujas dores é “mi-mi-mi”. Nesse sistema não há tempo para sentir tristeza, tão fundamental para qualquer ser que esteja vivo, para ficar doente, para chorar e pausar enquanto recuperamos nossas forças. A correnteza nos arrasta só de olharmos para o lado da margem. Quantos homens ao perder um emprego, ao se divorciarem, caíram na bebida e não levantaram mais?! Quantas mulheres vítimas de abuso sexual precisam lidar com os traumas em um sistema que nos querem sorrindo o tempo todo?! Quanta gente ferida pelo peso do quotidiano, pelos seis ônibus diários, pela vulnerabilidade dos vínculos de trabalho, ausência de políticas públicas efetivas, e, apenas escorregam na vida, caem na margem?!
Toni Morrison, em “O olho mais azul” diz que, para a população negra, a ameaça de ficar na rua era algo frequente e que se podia acabar na rua por qualquer motivo: porque comia demais, por usar carvão demais, porque bebia demais ou porque se era colocado para fora. E existe uma grande diferença entre ser colocado para fora e ser colocado na rua, não tendo para onde ir. A distinção que ela faz é a seguinte
Se a pessoa é posta para fora, vai para outro lugar, se fica na rua, não tem para onde ir. A distinção é sutil, mas definitiva. Estar na rua era o fim de alguma coisa, um fato físico, irrevogável, uma condição metafísica. Estar na rua era outra histόria, era fato concreto, como o conceito de morte e estar realmente morto. Um morto não muda e estar na rua é estar pra ficar. (MORRISON, p.21)
Podemos comparar a rua com a margem e visto que a maioria está nela, precisamos construir ali o nosso lugar; habitável e durável. Transformar o choro e a exclusão em vida, revirar o curso do rio pelas beiradas. E não há “cada um”, isso é ilusão! É ilusão! Para nós, ou a vida e a luta são projetos coletivos, ou então morremos na margem.
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