Nasce uma heroína: Nola Darling, a mulher negra e a reinvenção do amor

O cinema têm nos bombardeado com estereótipos responsáveis pela construção deturpada sobre o que é ser uma mulher negra. A partir de uma estética da miséria e violência, fomos encarceradas em papeis por vezes caricatos, outras simplórios, num lugar de não existência. Sempre sofrida, passiva e não importante, a mulher negra foi reduzida ao mínimo no que tange a representatividade e, ainda hoje, poucos cineastas ousaram colocar a mulher negra no seu devido lugar, o de protagonista. Um dos poucos e primeiros que o fizeram foi Spike Lee: Nola Darling é a protagonista de Ela quer tudo (1986), primeiro longa-metragem do diretor que cria uma heroína que rompe com as características encontradas na maioria das mocinhas de Hollywood: ela é uma mulher negra, e além disso, não está em sofrimento constante, sua história não começa nem é atravessada por uma exploração imagética da degradação humana; ela é uma mulher autônoma e complexa, bem sucedida profissionalmente, agente ativa dos seus quereres e não uma mera observadora objetificada. Nasce aí uma nova heroína.

As características e conflitos dessa protagonista nos dizem algumas coisas sobre a mulher negra contemporânea. Ela é, como descreve Bell Hooks em Vivendo de amor (1994), uma “mulher negra forte”, e isso é mais complexo do que pode parecer. Segundo a autora, desde a escravidão, os negros se forçaram a não sentir como forma de (r)existir. A exposição constante das violências e abusos dos nossos nos fizeram reprimir as emoções como forma de sobrevivência. Nola Darling é uma mulher perfeitamente capaz de reprimir emoções e garantir sua autonomia, tanto material quanto afetiva. O filme narra uma tentativa de poliamor entre a protagonista e três homens e, como a maioria das mulheres negras que escolhem a não monogamia como forma de vida, experimenta o contraste de ser objeto de uma imensa admiração – seus companheiros têm quase que uma inveja de sua liberdade – ao passo que lida com constantes agressões verbais, sendo rechaçada por eles pelo mesmo motivo.

Ficamos então, nós, mulheres negras não monogâmicas, com um problema não solucionado: “uma vez que me é negado o amor romântico – baseado nos valores cristãos e capitalistas, conquistar esse ideal não seria um ato de transgressão? Ou persegui-lo não seria fazer a manutenção de um sistema que não nos favorece? Como, afinal, podemos ser autônomas nas relações afetivo-sexuais sem cair na falácia da liberdade de uma forma que nos tornemos mais facilmente descartáveis?” O corpo de Nola é erotizado ao ponto de nenhum personagem com quem ela se relacione em algum nível não esteja fazendo alguma investida sexual, é como se, apesar de ter construído para si uma rede de cuidado, ninguém é realmente digno de sua confiança e não há um lugar seguro. Ao mesmo tempo que parece brutalmente segura de si, por vezes não sabemos se ela manipula os parceiros ou por eles é manipulada. A questão da solidão da mulher negra, sabemos, não se trata de quantos parceiros (ou parceiros em potencial) nos cercam mas no papel que exercemos e ao que nos sujeitamos nas relações que construímos. Nola Darling ocupa lugares no mínimo contraditórios no imaginário e na vida dos três companheiros.

O medo dos estereótipos e categorizações persegue a heroína, pois, numa sociedade racista, uma pessoa negra nunca deve ser o que se espera, e quando falamos de afeto fugir das normas monogâmicas da branquitude me parece ser a única solução. Nossa heroína, como bem sabem as mulheres negras, luta para preservar uma essência ancestral que há muito tentam usurpar. A vulnerabilidade de Nola é punida com sofrimento, como se a mensagem para as mulheres negras fosse que se fechar e endurecer é o único caminho para a sobrevivência. No único momento em que se declara e decide lutar pelo homem que acredita ser merecedor de seu mais íntimo, ele a estupra, frustrando o que seria um desfecho romântico clichê, padrão ou branco. No fim, a heroína escolhe por si mesma, por uma nova proposta de sobrevivência para as mulheres negras, a do amor interior, pois, devemos partir da ideia de amor que nos foi negada para construir novas formas de reinventá-lo.


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