Maria Alice Setubal, de 71 anos, umas das herdeiras do grupo Itaú e reconhecida por anos de atuação na educação pelo terceiro setor, diz que não é “petista de carteirinha” mas resolveu declarar voto a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno das eleições. Para ela, o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), que tenta a reeleição, é responsável por um “desastre” no ensino público do País. “Quem entende de educação e não está preocupado em defender uma pauta moral sabe que ele não fez nada, nem antes nem durante a pandemia. E na hora que você não faz nada em educação, você retrocede. A gente retrocedeu 10 anos.”
Neca, como é conhecida, preside o conselho da Fundação Tide Setubal e é histórica apoiadora de Marina Silva (Rede), eleita deputada federal no dia 2. A ligação das duas fez com que ela se tornasse alvo de ataques do PT durante as eleições de 2014, o que diz ter sido “muito agressivo e injusto”, mas que considera “página virada”. Na segunda-feira, 17, vai estar ao lado de Marina, Simone Tebet (MDB) e Armínio Fraga em evento para conversar com empresários que relutam em dar voto a Lula. Para Neca, o candidato precisa deixar mais claras suas propostas em todas as áreas, não só na educação. “Durante o primeiro turno, ele falou muito olhando para o retrovisor, o que ele fez, e falou muito pouco do que ele vai fazer.”
Representante de uma das mais ricas famílias do Brasil e filha de Olavo Setubal, ela afirma que sente “tristeza profunda” ao ver declarações de voto a Bolsonaro entre a elite. “É uma incapacidade de perceber o que para mim é muito óbvio, que todos ganham com uma sociedade com menos desigualdade. Mas tem pessoas que não querem ser iguais, elas querem manter as diferenças.”
Para ela, que se formou em ciências sociais, com mestrado em ciência política e doutorado em psicologia da educação, o País precisa de um governo que olhe para as desigualdades educacionais e as diferenças territoriais, que invista na formação dos professores, alfabetização, ensino técnico e bolsas de mestrado e doutorado. Agendas que não fazem parte do governo atual porque, na opinião de Neca, Bolsonaro “não acredita no sistema público de ensino”. “E eu acredito totalmente. É a única forma de conseguirmos garantir uma educação de qualidade para todas as crianças no Brasil. Não tem a menor chance de um governo Bolsonaro priorizar a educação.”
Confira a entrevista:
Durante as eleições, a educação nunca é o assunto que mais aparece. Mas o ensino continua sendo um dos grandes problemas do País. Por quê?
Os políticos todos falam que educação é prioridade, aí já mudam de assunto em seguida. Eu acho que a sociedade brasileira não optou por um modelo baseado na educação. Nosso modelo foi baseado no consumo, PSDB e PT fizeram um modelo de desenvolvimento baseado no consumo, não foi exatamente na educação. Então o que eu espero é que realmente um governo Lula traga o meio ambiente e a educação para o centro das políticas. Não é só não desmatar, é uma transição para uma economia de baixo carbono e a educação colada com essa visão. Que educação a gente precisa para um país que está buscando fazer essa transição? Como vai ser o ensino técnico, a formação para as profissões? Também precisamos trabalhar com equidade, ter na periferia os melhores professores, materiais melhores e menos alunos, como acontece no Canadá, na Finlândia. Aqui é ao contrário. Na periferia, os professores são temporários, tem mais aluno. Tem que mudar essa lógica. A gente também tem programas maravilhosos, leis incríveis, só que na hora de implementar é um desastre. É preciso levar em contas as diferenças, os territórios, não adianta ter a mesma implementação de educação que está dando certo em Sobral. Não vai dar certo na periferia de São Paulo e no Amazonas.
Como a senhora analisa os governos Lula e Bolsonaro na educação?
Houve muitos méritos na educação durante o governo Lula, especialmente com Fernando Haddad (ministro da Educação, entre 2005 e 2012), que fez uma continuação em relação ao Paulo Renato Souza (ministro da Educação de FHC, entre 1995 a 2002). Foi ampliada a questão da valorização do magistério, das universidades públicas e criou-se o Ideb (indicador nacional de qualidade da educação). Eu já estou na educação desde os anos 90, a gente fazia uma avaliação quase intuitiva e o Ideb tornou possível uma base de comparação mais científica e voltada para aprendizagem. Foram passos muito importantes para a educação, quando o buraco era muito mais fundo. A gente estava completamente defasado comparado a todos os países, inclusive da América Latina. Fernando Henrique avançou, Haddad deu continuidade e saltos. Obviamente a gente ainda tinha problemas graves de qualidade na educação, mas nos últimos quatro anos, o retrocesso foi enorme. Não teve nenhuma política educacional que se sustentou, foi absolutamente ausente na pandemia. Realmente?..eu estou tentando achar outra palavra, mas foi um crime.
O plano de governo de Jair Bolsonaro para a reeleição na educação é extenso, é possível que seu próximo governo seja diferente nessa área?
Não, não tem a menor chance, na minha opinião, de um governo Bolsonaro priorizar a educação. Nesses últimos quatro anos, tivemos cinco ministros e nenhum experimentou uma política educacional. A pauta de Bolsonaro na educação é homeschooling, escola militar e proibição de temas na escola, como gênero, educação sexual e outros ligadas a pauta moral. Quem entende de educação e não está preocupado em defender uma pauta moral sabe que ele não fez nada, nem antes nem durante a pandemia. E na hora que você não faz nada em educação, você retrocede. A gente retrocedeu 10 anos. Claro que todos os países retrocederam, mas não ter política educacional durante a pandemia gerou esse desastre. Em vez da gente retroceder dois, três anos, a gente retrocedeu 10. Bolsonaro não acredita nas políticas públicas, eu acho que ele não acredita no sistema público de educação. E eu acredito que é a única forma de nós conseguirmos garantir uma educação de qualidade para todas as crianças no Brasil.
Neste segundo turno, a senhora já esteve em eventos de apoio a Lula. Por que resolveu declarar seu voto a ele?
Não sou petista de carteirinha, mas, neste momento, Lula é a única liderança capaz de reconstruir esse País. Não porque eu acho ele o ideal, não é isso. Mas eu acho que, neste momento, é a única liderança capaz de conversar, negociar e fazer essa frente ampla. Durante o primeiro turno, ele falou muito olhando para o retrovisor, o que ele fez, e falou muito pouco do que ele vai fazer. A minha expectativa é que ele fale mais agora, acho que até já começou, falou sobre sobre renda, emprego. Na educação, sobre ensino técnico. Vou com Marina e a Simone Tebet conversar com quem ainda não decidiu o voto. Tem muita gente que fala que vai votar nulo, que diz que não consegue votar no Lula, eu não entendo.
A senhora chegou a ser diretamente atacada pelo PT em propagandas eleitorais quando apoiou Marina Silva (Rede) à Presidência.
Foi algo muito agressivo, desproporcional e injusto. Obviamente mais contra Marina, mas eu fui um alvo bastante forte e claro que não foi bom. No fim da campanha de 2014 eu estava com estafa, mas fui me recuperando. E isso para mim passou, página virada, entendeu? De jeito nenhum eu justifico ou banalizo o que eles fizeram, mas tem algo maior em jogo. E já tem tempo, né? Em 2018 eu já tinha superado totalmente.
Como a senhora analisa a sociedade brasileira hoje, que elegeu muitos candidatos de direita e ligados a Jair Bolsonaro no dia 2?
É um momento muito difícil que a gente vive hoje. Pelo recorte educacional não se explica quem está votando em Lula e quem tá votando de Bolsonaro. As pessoas com maior renda, com ensino superior, estão votando no Bolsonaro. Ter uma sociedade mais educada, não vai querer dizer você vai ter uma visão crítica, mais progressista. Esse era o raciocínio que a gente tinha alguns anos atrás e que não se confirmou. Eu tento buscar algumas explicações, mas acho que elas são atravessadas por muitos recortes, um deles é que a sociedade brasileira sempre teve um contingente da população que é conservador, que busca preservar os seus privilégios. Que busca não mudar a sociedade. A gente tem uma herança escravocrata muito grande, que está acostumada a ser servida. É uma sociedade que quer manter seus privilégios, a pandemia trouxe alguns exemplos disso, como o desembargador que brigou porque não queria por a máscara. Tem pessoas que não querem ser iguais, elas querem manter as diferenças.
A senhora já disse que se sente mal em ver a elite declarando voto a Bolsonaro.
É uma tristeza profunda. É uma incapacidade de perceber o que para mim é muito óbvio, que todos ganham com uma sociedade com menos desigualdades, uma sociedade que você tenha mais segurança de sair da rua. Não precisa viver com muros altos, carros blindados, segurança. Você ter uma população educada numa escola pública, que tenha saúde gratuita, todo mundo ganha. Em países da Europa ou no Canadá, a questão do direito para todos é muito forte, da cidadania, da coisa pública. Porque isso rebate em todo mundo e isso faz bem para todos. A gente tem essa mentalidade, infelizmente, parte da elite quer manter esses privilégios, viver dentro de um muro e daqui vai para Europa, vai para Miami, sai do seu carro blindado, entra no helicóptero.