Pesquisa do Sebrae mostra que 49% das negras recorrem à atividade para enfrentar crises
Por Marina Estarque e Priscila Camazano, da Folha de São Paulo
A paulistana Maíra Luz, 37, procurou emprego por seis meses até perceber que ia ter dificuldade para se recolocar no mercado.
Em 2016, ela decidiu abrir uma empresa de comida saudável, a Free Soul Food, que fatura cerca de R$ 45 mil por mês e tem sete funcionárias.
Assim como Maíra, quase metade das empreendedoras negras no Brasil, 49%, começa seus negócios por necessidade, segundo pesquisa do Sebrae feita a pedido da Folha. A proporção entre as brancas é menor, apenas 35%.
Esse tipo de negócio tende a ser mais precário, com menos planejamento, porque geralmente a pessoa não tem outra opção de renda.
“Já por oportunidade, o empreendedor estuda o mercado, então tende a ser mais bem-sucedido no longo prazo”, diz a coordenadora nacional de empreendedorismo feminino do Sebrae, Renata Malheiros.
O ambiente glamoroso comumente atribuído ao setor é a realidade de uma minúscula parcela da população, afirma a fundadora da Rede Mulher Empreendedora, Ana Fontes.
“A maioria das pessoas busca empreender porque perdeu o emprego, mais por sobrevivência”, diz ela, que se declara parda.
Para Adriana Barbosa, fundadora do Festival Feira Preta, o perfil de empreendedorismo das negras está mudando.
“Há muitas com alto grau de qualificação que não são absorvidas pelo mercado e saem para empreender. Muito se fala da necessidade, mas isso pode ser encarado como potência.”
As mulheres negras, contingente que reúne pretas e pardas, formam o maior grupo da população. Somam quase 60 milhões de pessoas —28% dos brasileiros, segundo a PNAD contínua do IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Para traçar a trajetória delas na geração da riqueza nacional, a Folha ouviu 26 mulheres pretas e pardas e apresenta os depoimentos numa série de quatro capítulos. Nesta reportagem, o foco é a participação delas no empreendedorismo e as dificuldades que enfrentam.
As mulheres negras são 17% dos empreendedores do país e ganham menos do que todos os outros grupos, R$ 1.384 por mês.
Isso equivale a cerca de metade do rendimento das empreendedoras brancas, de R$ 2.691, e 42% do valor recebido por homens brancos, de R$ 3.284.
Malheiros diz que o dado serve como um indício de que mulheres, principalmente negras, estão em áreas com menor rendimento.
“Apenas 2% dos 100 fundadores das principais startups brasileiras são mulheres”, diz ela, sobre setores de inovação, que são mais lucrativos.
De acordo com a pesquisa do Sebrae, as empreendedoras negras também estão mais sujeitas à informalidade: somente 21% delas têm CNPJ. A porcentagem entre brancas é o dobro, de 42%.
A informalidade também é um sinal de precariedade, diz Malheiros. Sem um CNPJ, a empreendedora não pode emitir nota fiscal, o que restringe o acesso ao mercado formal e a crédito.
Mesmo com uma empresa formalizada, conseguir um financiamento pode ser difícil. Foi o que aconteceu com Maíra. Sua empresa faturava R$ 15 mil por mês, e ela precisava de R$ 30 mil para ampliar a produção após fechar um contrato com a Whirlpool, dona das marcas Brastemp e Consul.
“Fui em muitos bancos e não consegui absolutamente nada”, conta ela, para quem o fato de ser mulher e negra pesou nas negativas.
Segundo levantamento do Sebrae, as empreendedoras têm índices de inadimplência mais baixos e, no entanto, recebem empréstimos com valor menor e com juros mais altos do que os homens —os dados, nesse quesito, não têm recorte racial.
Outra empreendedora que teve problemas para conseguir um empréstimo foi Sheila de Oliveira, 43, dona da Makeda Cosméticos.
Para iniciar a fabricação dos 17 produtos de sua linha para cabelos crespos e cacheados, Sheila precisava de R$ 4.000, mas o valor foi negado pelos bancos. A solução foi juntar o dinheiro com trabalhos paralelos de promoter, modelo e atriz.
Hoje a Makeda fabrica, de forma terceirizada, centenas de unidades por mês, diz Sheila, que não revela dados de faturamento da empresa.
“O mercado estava todo focado em cabelo liso, e as clientes tinham dificuldade de encontrar cremes para cabelos crespos. Vi nisso uma oportunidade”, conta.
Além das negativas dos bancos, outra dificuldade foi a falta de networking.
“Alguns grupos compartilham entre si vagas e oportunidades, e em geral as mulheres negras não participam disso”, diz a diretora-executiva do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade), a psicóloga Cida Bento.
A falta de referências ficava nítida quando Sheila tentava viabilizar seu negócio. Até na hora de buscar fornecedores em feiras, como compradora, enfrentou preconceito.
“Como assim vocês têm uma empresa?”, perguntavam. Ela e a irmã nem sequer eram convidadas para se sentar. “Eles estão acostumados a ver mulheres negras limpando os estandes deles, não como empresárias. Sabemos disso porque já limpamos estande”, lembra.
Quando era criança, Sheila e a irmã ajudavam a mãe no trabalho— ela era doméstica e fazia bicos de limpeza em um centro de convenções de São Paulo. Sheila compara, com ironia, a situação anterior da família com o status atual de empresária. “Melhoramos só um pouquinho”, diz, rindo.
TRABALHO DOMÉSTICO
O trabalho doméstico é a principal atividade das empreendedoras negras (18%), mas só aparece em sexto para as brancas, segundo a pesquisa do Sebrae.
Dentro desse grupo entram diaristas, faxineiras, cuidadoras de idosos ou cozinheiras, contanto que não tenham carteira assinada. “Ela tem que buscar o rendimento dela todo mês, ir atrás de cliente, administrar a agenda dela. Por isso é considerado empreendedor”, explica Fontes.
Em seguida estão os segmentos de cabeleireiro e beleza (15%) e, depois, restaurantes e outros serviços de alimentação (13%). Serviço ambulante de alimentação (4%) também é uma das principais atividades de empreendedoras negras, que sequer aparece no topo da lista das brancas.
Há motivos históricos, ligados à escravidão e o período pós-abolição, para a concentração em tais áreas, segundo Barbosa, do Festival Feira Preta. “No caso das mulheres negras, muitas começaram a emancipação vendendo comida em tabuleiro, pois era o que estava mais próximo da realidade delas”, diz.
A grande quantidade de empreendedoras negras que trabalham no setor de cabeleireiro e beleza, segundo Barbosa, está relacionada às oportunidades de negócios voltados para a estética negra, como foi o caso da Sheila, da Makeda.
Empreendedores negros identificam essas demandas, que passam despercebidas das grandes marcas, diz Barbosa. “O ponto de partida disso é o cabelo, a roupa, o apelo da identidade negra”.
INOVAÇÃO
A concentração no serviço doméstico, beleza ou alimentação são também explicadas pelo que especialistas chamam de divisão sexual do trabalho, que se reflete no empreendedorismo.
“É um problema sério, a falta de mulheres em startups, no setor de matemática, robótica, TI”, afirma Malheiros.
Contra essa tendência, a psicóloga de formação Maitê Lourenço, 35, resolveu mergulhar no mundo da tecnologia. Ela trabalhou mais de 12 anos com recrutamento e seleção de pessoas, até decidir criar um e-commerce de elaboração de currículos e simulação de entrevistas.
Em 2016, fundou o BlackRocks, para estimular o empreendedorismo tecnológico negro. A organização tem três frentes de trabalho: eventos, consultoria e um programa de aceleração de startups.
“Temos que desmistificar essa ideia de que a cultura afrobrasileira não está inserida na tecnologia e vice-versa. Escolas de samba já usam drone para orientar suas alas, e impressoras 3D para projetar as suas alegorias”, exemplifica.
A química Taynara Alves, de 28 anos, passou pela aceleradora. Ela criou uma startup, InQuímica, para elaborar um produto que retira agrotóxicos de frutas e legumes.
Segundo Taynara, o BlackRocks ajuda a inserir negros nesse ecossistema, o que outras aceleradoras não fazem. “Tem muitas pessoas com talentos incríveis que infelizmente não têm essas oportunidades”.