Nem mulatas do Gois e nem no “interior” de Grazi Massafera

Chega a ser ridícula a mania de querer mostrar que não se é racista. Em vez de se posicionar, jogam palavras ao vento que nada mudam

Por Djamila Ribeiro, do Carta Capital 

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É fácil para Grazi ser negra por dentro. Porque se fosse por fora, só faria papéis estereotipados (Reprodução/Facebook)

Estamos em 2016 e colunistas de grandes veículos de comunicação ainda se julgam no direito de tratar mulheres negras como coisas. Ancelmo Gois, do jornal O Globo, é conhecido como “apreciador de mulatas” e em sua coluna “As mulatas do Gois” segue objetificando seres humanos.

Em uma delas deu espaço para um homem escolher novas mulheres para seu show de horrores machista. Essa pessoa chegou a usar expressões como “nova safra de mulatas”, “mulatas sub 20”, “espécie”. E eu achando que mulheres negras pertenciam à espécie humana.

Mesmo não tendo sido Ancelmo quem escreveu diretamente, a coluna é dele e continuamente, carnaval após carnaval, ele vem se utilizando dessas práticas racistas como se mulheres negras só servissem para isso. Percebem a violência disso? Podemos apreciar vinhos, queijos e não um grupo de seres humanos como se fosse a mesma coisa. Ser humano pode ser tratado em safra?

No início do mês, juntamente com a ativista Stephanie Ribeiro, escrevi para um grande jornal um manifesto pelo fim de estereótipos como o da Globeleza. Nesse artigo criticamos o termo mulata e porque seu uso é ofensivo: “Para começar o debate em torno dessa personagem, precisamos identificar o problema contido no termo “mulata”. Além de ser palavra naturalizada pela sociedade brasileira, ela é presença cativa no vocabulário dos apresentadores, jornalistas e repórteres da emissora global.

A palavra de origem espanhola vem de “mula” ou “mulo”: aquilo que é híbrido, originário do cruzamento entre espécies. Mulas são animais nascidos do cruzamento dos jumentos com éguas ou dos cavalos com jumentas. Em outra acepção, são resultado da cópula do animal considerado nobre (equus caballus) com o animal tido de segunda classe (equus africanus asinus).

Sendo assim, trata-se de uma palavra pejorativa que indica mestiçagem, impureza. Mistura imprópria que não deveria existir. Empregado desde o período colonial, o termo era usado para designar negros de pele mais clara, frutos do estupro de escravas pelos senhores de engenho. Tal nomenclatura tem cunho machista e racista e foi transferido à personagem globeleza, naturalizado. A adjetivação “mulata” é uma memória triste dos 354 anos (1534 a 1888) de escravidão negra no Brasil.

Ou seja, esse termo sequer deveria ser usado. Raramente vemos mulheres negras sendo convidadas para escrever artigos, sendo apresentadoras, atrizes protagonistas, mas nessa época do ano querem nos confinar a esse tipo de lugar.

É inadmissível que em pleno século XXI, Ancelmo Gois sinta-se no direito de nos retratar de modo tão subumano. Qual o espaço que o colunista abre para discussão sobre racismo na sociedade?

A crítica não é de forma algumas às mulheres que foram “mulatas do Gois”, como penalizá-las numa sociedade que não dá oportunidades para mulheres negras? Temos que pautar a necessidade da criação de outras possibilidades. E se a moça negra quiser ser a colunista do jornal? Há espaço para ela?

Sempre bom frisar que não tenho problema algum com a sensualidade, com a posição de passista, muito pelo contrário. O problema é sempre nos confinar nesses lugares, tratar essas moças como se fossem pedaços de carnes prontos a serem devorados.

Para coroar a falta de noção, nos últimos dias a ex-BBB Grazi Massafera foi eleita uma das mulatas do tal colunista e disse: “Eu tenho uma mulata dentro de mim, não tem como não ter. Eu acho que dentro de quase toda brasileira tem. Em algumas, ela é um pouco mais inibida. A minha é mais assanhada”.

É o cúmulo da falta de respeito. Primeiro pelo termo que já explicamos, segundo por colocar mulheres negras como se fossem a mesma coisa, uma categoria homogênea, logo, objetos. Qual mulher negra vive dentro dela? Taís Araújo ou Viola Davis? Percebem, como mulheres negras somos seres diversos, distintos, com personalidades diferentes e não coisas.

Segundo, porque Grazi é loira e está sempre fazendo novelas e séries. Fácil ser negra por dentro, não é mesmo? Porque se fosse por fora ou seria somente “mulata do Gois” uma vez por ano ou faria papéis estereotipados. Chega a ser ridícula essa mania que pessoas brancas têm de querer mostrar que não são racistas. Em vez de realmente se posicionarem contra o racismo, jogam palavras ao vento que nada mudam.

Grazi não deixou de estrelar campanhas publicitárias e de ganhar papéis de destaque mesmo “tendo uma mulata por dentro”. Fora isso, dizer que existe uma mulata dentro de si, dentro do contexto em que vivemos, significar dizer que todas sabemos sambar e fazemos as mesmas coisas. Somos predestinadas a um caminho somente. Sou absolutamente contra a objetificação de mulheres, mulheres brancas também são, mas não como as negras.

O que significaria eu dizer que existe uma loira dentro de mim? Nada. Ninguém presume que uma mulher loira é uma coisa só. Poderiam pensar que falo de uma atriz, modelo ou engenheira nuclear. Não há o mesmo estigma. O fato de mulheres loiras serem também objetificadas não exclui o fato de também serem atrizes protagonistas, estamparem capas de revistas e grandes campanhas publicitárias, apresentarem programas.

A elas, há várias possibilidades, até de ser “mulata do Gois” por um dia e estrelar uma novela durante o ano. Logo, não se pode essencializar um grupo todo de pessoas, como mulheres negras, como se fossem todas iguais, uma safra de tomates.

O Brasil é o país da piada pronta sem graça mesmo, principalmente no quesito racismo. Naturalizam as violências que sofremos, nos negam oportunidades e tentam nos penalizar por mostrarmos essas situações.

Essas pessoas têm acesso a informações e deveriam ler os vários estudos acadêmicos, pesquisas, artigos sobre a questão para evitar passar vergonha.

Falta interesse ao branco médio no Brasil de se aprofundar nesses assuntos que deveriam ser obrigatórios para que alcancemos um marco civilizatório. Mas preferem nos tratar como coisas, inferiores, objetos. Ao dizer que uma mulata vive dentro dela, Grazi está negando nossa humanidade.

Mulher negra não faz parte de safra e nem é uma “espécie” para deleite de homem machista e racista. Somos pessoas e exigimos respeito.

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