Nem todo negro é preto

“O que entendo como luta é preta e coletiva, a luta de alguns negros pode não ser, não são menos negros, são frutos do meio tentando defender o meio, são o que a democracia racial queria para todos, o que torna ser preto uma revolução”

Por Stephanie Ribeiro, na Marie Claire

Stephanie Ribeiro. (Foto: Guilherme Prado Lima)

 

Militantes reunidos durante a Convenção Constitucional Revolucionária organizada pelo Black Panthers, na Filadélfia, em 1970 (Foto: Getty Images)

 

Voltei de viagem de férias há 15 dias, e resolvi continuar imersa nas leituras que considero essenciais para a atual conjuntura: textos de integrantes do Partido dos Panteras Negras (em inglês, Black Panther Party ou BPP). Num desses, me deparei com uma frase que me marcou muito, em meio a um discurso histórico que esclarece a importância dessa organização para a luta negra, escrito pelo jovem Fred Hampton, potência dos BPP morto aos 21 anos, pouco depois dessa fala, realizada na Northern Illinois University. Hampton, ao falar sobre a posição do partido em relação a negros, destacou como em vários momentos os panteras negras se viram diante de negros que não entendiam suas lutas e de alguma forma contribuíram para a deslegitimação de suas ações. A partir disso, Hampton afirmou:

Nós vamos amar todas as pessoas negras porque todo negro é um homem preto em potencial

Na frase de Hampton, percebemos que até mesmo para membros do BPP era nítido que consciência racial e de classe não são inerentes a sujeitos apenas por serem o que são.
Logo, temos todos nós, que somos negros, potencial para sermos sujeitos que compreendem as opressões que nos afetam, que não compactuam com isso e que entendam a necessidade do acesso a direitos para TODOS. Portanto, nossa emancipação é coletiva, e não individual, e vamos lutar por todos, mesmo aqueles que não sabem as amarras que os prendem, já que existe potencial nesse sujeito para que ele um dia note e lute ao nosso lado, mas mesmo que isso não aconteça, nossa luta é coletiva e sempre será.

Por isso, quando me perguntaram sobre os apoiadores do Bolsonaro que são negros, que negam a necessidade de um sistema de cotas num país de desigualdade racial, e que usam suas narrativas de mérito individuais para impor uma agenda de que basta querer, afinal, somos tratados da mesma forma. Eu, Stephanie Ribeiro, prefiro apenas me resguardar a responder que: NEM TODO NEGRO É PRETO. E ser preto nessa sentença não é sobre COR, é sobre consciência racial COLETIVA. No fundo sequer acho que todos serão, como Hampton diz, o potencial existe e nós que somos PRETOS, estaremos lutando para que todos os NEGROS sejam de fato vistos como sujeitos, numa sociedade que ainda nos vê como alvo.

Reforço que não estou falando aqui de debates sobre colorismo, tampouco querendo definir a identidade racial alheia. Meu ponto sequer é dizer se pessoas negras podem ser de direita ou não, que sejam, que essa seja sua escolha política. Contudo, os dois nomes que hoje acessam cargos políticos com votação massiva, vereador paulistano Fernando Holiday (DEM) e o deputado federal Hélio Negão (PSL), fizeram isso enfatizando discursos de ataque para com negros, ao se dizerem contra as políticas sociais que tem como foco diminuir a vitimização estrutural imposta aos negros no Brasil, políticas essas que eles acham que não os afetam. Tanto Holiday quando Hélio, usam a pauta racial para alcançar visibilidade em seus meios, entretanto, fazem isso individualizando questões coletivas e servindo de bode expiatório da pauta conservadora, que não quer ser associada ao racismo, mesmo usando sempre uma narrativa de negro único, em que um sujeito só, com as opiniões que eles compactuam, se torna uma representação de todos, mesmo que isso seja na não pluralidade.

 

O Black Panther Fred Hampton durante um evento em Chicago, em 1969. (Foto: (Chicago Tribune file photo/TNS via Getty Images))

 

A direita tenta absorver o debate racial de representação, elegendo figuras como Hélio Negão e Fernando Holiday, entretanto, mantêm para esses o velho papel de coadjuvantes. Hélio é tudo, menos um integrante da equipe de transição _e provavelmente será visto por aquele que não participou de debates com medo de mostrar sua ignorância, como ignorante demais para esse lugar. Até porque a sua presença é figurativa, seu papel é garantir que Bolsonaro não seja tido como racista, nem sua voz temos clareza de qual é, pois não precisamos ouvi-la. Já Holiday, mesmo diante de seus discursos, viu sua principal opositora enquanto vereador, ser lançada como deputada e conseguir mais esse mandato. Enquanto ele segue vereador, os colegas almejam se tornar líderes na Câmara dos Deputados.

Dois bons frutos da democracia racial: sentem-se incluídos pela própria sociedade que determina os lugares que podem ou não estar. O “bom negro brasileiro”, aquele que se contenta com o mucambo e não almeja o sobrado, mesmo que tenha construído o segundo com suas próprias mãos. Não há dúvidas de que, no Brasil, existe uma doutrinação que atinge até mesmo escolas, e espalha como verdade absoluta a de que negros e brancos têm as mesmas oportunidades. Enquanto isso, uns seguem não falando, outros seguem falando muito e usando o racismo quando lhes convém. Veja, pensar diferente, todo mundo pensa, nossa pauta sempre foi e sempre será pela busca de igualdade nas nossas diferenças, a questão é que nossas opiniões e projetos políticos não podem ser pautados na negação de acesso para grupos que comprovadamente, por meio de pesquisas nacionais e internacionais, foram e são prejudicados por sua identidade. O que entendo como luta é preta e coletiva, a luta de alguns negros pode não ser, não são menos negros, são frutos do meio tentando defender o meio, são o que a democracia racial queria para todos, o que torna ser preto uma revolução.

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