Racismo e naturalização das desigualdades: uma perspectiva histórica

Artigo I – “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”

(Declaração Universal dos Direitos Humanos)

Por LUCILENE REGINALDO, da UNICAMP

LUCILENE REGINALDO (Imagem retirada do site  UNICAMP)

Nos primeiros dias de abril de 2016, as dependências do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp amanheceram com a seguinte pichação: “Aki (sic) não é senzala! Tirem os pretos da Unicamp já!”.  Infelizmente não era a primeira ocorrência, no dia 7 de março do mesmo ano, outros rabiscos de cunho racista já tinham espantado o mesmo Instituto: numa de suas paredes, a expressão “White Power” apareceu ladeada por um símbolo que faz referência à famigerada Ku Klux Klan (KKK). Não é mera coincidência o fato de estas pichações ocorrerem no início do ano letivo, o primeiro da vigência das cotas raciais nos Programas de Pós-Graduação do IFCH, aprovadas em 11 de março de 2015 pela Congregação do mesmo instituto.  As pichações soavam como uma reação daqueles que acreditavam que as cotas estariam usurpando algo que concebiam como direito histórico e exclusivo, violando, ao mesmo tempo, uma espécie de hierarquia natural que definia previamente quais lugares deviam ser ocupados por brancos e negros na sociedade brasileira. Nesta lógica, o lugar esperado, desejado e possível para os negros seria a senzala, não a universidade.  A pichação de abril de 2016 tinha uma referência direta à história, talvez por isso, tenha me debruçado sobre ela com mais vagar.  A despeito da torpeza, ela me parece boa para pensar!

Das teorias raciais à história do racismo

A crença (que já foi considerada ciência, e que também podemos chamar de ideologia) de que a humanidade pode ser classificada em raças diferentes e desiguais em capacidades físicas, morais e intelectuais tem uma história. Há uma vasta bibliografia sobre o tema. Autores de várias gerações já descortinaram a história das teorias raciais que, desde o final do século das Luzes, criaram as bases científicas para a racialização da humanidade. Em resumo, essas teorias, não por acaso, chegaram à conclusão de que o homem branco ocidental estava no topo da pirâmide da espécie, o que justificava seus privilégios, direitos e o domínio sobre aqueles que foram classificados como inferiores.  Creio que é desnecessário enumerar aqui os efeitos danosos destas teorias. Diria que são quase incontáveis, até mesmo indizíveis, como a visão das “Árvores do sul [que] dão frutos estranhos. Sangue nas folhas e sangue na raiz” [1].  Apenas para lembrar os horrores da KKK, exaltada nas paredes do IFCH em 2016.

Num belíssimo livro publicado em 1981, Stephen Jay Gould chamou a atenção para a falácia dos experimentos que comprovavam a superioridade do macho, branco, ocidental.[2]  Para tanto, no verão de 1977, Gould passou duas semanas reavaliando os dados de Samuel Morton, famoso médico e cientista da Filadélfia, o mais importante empírico da poligenia.  Morton reuniu uma coleção de mais de 600 crânios com o objetivo de medir e comparar a cavidade craniana de distintas raças, entendendo que isto permitiria uma medida fidedigna do cérebro.  Sua hipótese era de que a hierarquia racial poderia ser objetivamente comprovada pelo tamanho do cérebro. Após avaliar minuciosamente os dados de Morton, Gould concluiu que eles “formam uma colcha de retalhos de falsificações e acomodações evidentemente destinadas a verificar determinadas crenças a priori”.[3]  Em suma, para Morton e outros homens de ciência da sua época, a crença na superioridade racial dos brancos era um pressuposto que podia levar à manipulação “inconscientemente” de seus dados a fim de confirmar a única assertiva aceitável para o establishment.

Embora muito já se saiba sobre a história das teorias raciais, pesquisas recentes têm chamado a atenção para outra dimensão histórica que envolve o tema, notadamente, a história social do racismo. Em termos mais gerais, a emergência das classificações raciais e do próprio racismo como fenômeno histórico tem sido objeto de investigação e reflexão por parte de vários pesquisadores. Ainda que o objeto seja comum, há interpretações distintas sobre o fenômeno.  Nesse sentido, o reconhecimento da “emergência” e operacionalidade desses conceitos traça uma primeira linha divisória entre os estudiosos. Alguns reconhecem os marcadores raciais e práticas de discriminação neles fundadas desde a Idade Média, ou mesmo desde a Antiguidade, advogando a existência do “racismo antes da ideia de raça”.[4]  Muitos historiadores, no entanto, defendem que a ideia de raça e, por conseguinte, as práticas de discriminação com base nesta suposta hierarquia natural, é um fenômeno mais recente, filho da modernidade, ainda que não haja concordância no interir deste grupo quanto ao início do fenômeno da racialização.[5] Compartilho da perspectiva que reconhece o racismo como um fenômeno historicamente determinado, absolutamente vinculado às transformações e às novas configurações sociais que emergem após a escravização em massa dos africanos e, sobretudo, sua inserção nas sociedades europeias e do Novo Mundo.

Essa perspectiva histórica é crucial para entendermos, por exemplo, como práticas distintas, em diferentes sociedades, ao longo do século XIX, produziram efeitos semelhantes nos termos da racialização. Assim, ainda que a KKK possa ser uma referência para o raivoso pichador, é certo que, no Brasil, a constituição de uma sociedade marcada pela desigualdade racial prescindiu de um aparato legal que explicitamente limitou a cidadania de pessoas negras, como ocorreu nos Estados Unidos. Esta particularidade, que durante muito tempo informou aqueles que advogavam a inexistência do racismo no Brasil – penso que hoje ninguém mais tem coragem de afirmar isso – ganhou novas possibilidades de interpretação com estudos como o do historiador porto-riquenho Jerry Dávila. Diante de duas fotografias, tiradas com 35 anos de diferença, a primeira da década de 1930, de grupo de professores afrodescendentes da escola vocacional Orsina Fonseca (RJ); e a segunda de 1946, mostrando professores formandos brancos e seus professores no baile de formatura de 1946 da antiga Escola Normal (Instituto de Educação, desde 1932), Dávila se pergunta: “O que aconteceu com os professores de cor do Rio?” [6]  Para responder a pergunta, o historiador se debruçou sobre os processos históricos que levaram ao branqueamento dos professores do Rio de Janeiro, mesmo que não houvesse nenhum aparato legal que excluísse os negros do magistério. Para Dávila, isso foi possível por meio dos “processos de profissionalização do ensino e treinamento dos professores orientados pelos reformadores da educação” que eram pautados na combinação de valores de raça, classe e gênero.  De acordo com estes novos parâmetros, o professor ideal tinha um perfil definido: era branco, do sexo feminino e de classe média.

O desaparecimento dos negros do magistério no Rio de Janeiro, verificado por Dávila, se estende a outros espaços. Demarcados e predeterminados pela mesma lógica de exclusão os negros desapareceram de vários espaços de prestígio social, sobretudo a partir do final do século XIX, o que incluiu as universidades no Brasil, e também na Europa.[7]   Assim, a brancura das academias não é natural, é histórica. Mas a ignorância não é apenas do pichador.  O não lugar dos negros nas academias e universidades é uma invenção do racismo.  Esta invenção foi também responsável por produzir um apagamento dessa presença negra anterior que, por sua vez, produziu também uma total indiferença diante da “ausência”. Não é o lugar dos negros, eles nunca estiveram lá!

Muitos homens de cor (pretos e pardos) fizeram parte de destacados círculos políticos e intelectuais no Império e nos primeiros anos da República no Brasil. Isso pode ser atestado pela história de gente como José Ferreira de Meneses, tradutor, escritor, advogado, jornalista e abolicionista negro; José do Patrocínio e Machado de Assis, que dispensam apresentação, entre outros expoentes da cultura letrada brasileira no final do século XIX.[8]  À medida que o século XX avançou, no entanto, a exclusão se tornou marcante.  Os resultados de uma pesquisa recente sobre o perfil do romancista brasileiro que teve suas obras publicadas por grandes editoras entre 1965 e 2014 ilustra muito bem o fenômeno.  A investigação, realizada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, sob a coordenação da professora Regina Dalcastagnè, concluiu que o seleto grupo de prestigiados escritores e romancistas brasileiros contemporâneos é extremamente homogêneo, composto majoritariamente por homens brancos de classe média, nascidos no eixo Rio-São Paulo.[9]

Racismo: “companheiro da liberdade”

Ao remeter à escravidão, à senzala, a justificativa da inferioridade, de subalternidade dos negros, o racismo oculta seus vínculos com a história da liberdade. Segundo Silvia Lara, o racismo, mais que filho da escravidão, “foi companheiro da liberdade”![10]

Estima-se hoje em 4,4 milhões o numero de africanos desembarcados como escravos no Brasil entre os séculos XVI e XIX, de um total de 11 milhões traficados para toda a América. A presença dessa multidão de origem africana assustou muitos senhores e autoridades no Brasil colonial. Na segunda metade do século XVIII, mesmo quando a dominação escravista continuava inquestionada, a liberdade dos descendentes de africanos passou a ser um problema político: ela colocava em xeque a identificação dos negros e pardos com o mundo da escravidão.[11]  No século XIX, quando a população de livres e libertos negros ultrapassou a de escravizados, o problema ganhou dimensões ainda mais amplas para as elites políticas da jovem nação independente. [12]

Antonio Pereira Rebouças nasceu no Recôncavo da Bahia, no final do século XVIII, num momento em que “escravos e libertos pressionavam pelo alargamento do significado de liberdade na época das independências e pela obtenção e garantia de direitos civis” em toda América.[13]  Homem pardo de grande prestígio político, foi secretário da província de Sergipe, conselheiro do governo e membro do Conselho Geral da Província da Bahia, tendo participado como deputado na Assembleia Constituinte de 1823.[14]  Nesta assembleia, e nos debates que envolveram o tema nas décadas seguintes, foi ferrenho defensor do direito dos libertos à cidadania. Rebouças não questionava; na verdade estava de pleno acordo – como liberal que era – com o condicionamento do direito político à renda, como faziam a Inglaterra e a França, nações tomadas como modelo para nossa primeira constituição. Aferrado aos princípios liberais que deixavam aberta a porta dos direitos políticos (de votar e ser votado) para aqueles que, por “mérito e esforço”, se tornassem proprietários (como ele próprio), Rebouças temia que os encaminhamentos dados aos debates sobre direitos civis e políticos seguissem o exemplo de outra nação modelo, os Estados Unidos. Na década 1820, alegando questões de segurança, “juízes de estados norte-americanos como Missouri e Kentucky paulatinamente revogaram os direitos civis da grande maioria dos negros livres que, com base nos critérios de serem descendentes de africanos, não poderiam ser considerados plenamente cidadãos americanos”.[15]  Foi nesse período, mais precisamente em 1820, não por mera coincidência, que Morton, o “Gólgota americano” nas palavras de Gould, começou sua coleção de crânios.[16]

As discussões em torno da definição de quem poderia ser considerado cidadão brasileiro ocuparam várias sessões da assembleia constituinte de 1823, e o Conselho de Estado concluiu que esse direito cabia apenas aos homens livres. O texto final da constituição desconsiderou a restrição e deu um passo à frente, definindo que cidadãos brasileiros seriam “os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação”. A cidadania dos descendentes de escravos foi então grafada no corpo da lei. Contudo, como vimos brevemente, isso não impediu a constituição de uma sociedade cada vez mais marcada pelas desigualdades raciais ao longo do século XIX.

Racismo, história e combate

Uma história social do racismo ajuda a entender os complicados mecanismos que informam e conformam a particularidade da racialização e do racismo no Brasil. Desse modo, a virulenta reação diante das cotas, que se expressa hoje de forma mais aberta e agressiva do que em 2016, tem uma dimensão histórica. De certa forma, expressa o grande medo da expansão dos direitos civis e políticos para uma “multidão de pretos e mulatos” que faz parte da população brasileira.  O racismo se impôs como crença e ideologia para garantir a manutenção de privilégios sociais, econômicos e políticos aos que se supõem racialmente superiores. Talvez esta assertiva seja a mais importante contribuição intelectual da história para combater o racismo. Aquele que afirma que os pretos devem voltar para senzala advoga que a cidadania plena (o que inclui o acesso ao ensino superior de qualidade, porta de entrada para a ascensão social e econômica) é exclusiva daqueles que necessitam de uma falácia cruel, historicamente construída, para sustentar e legitimar seus privilégios.


1 – Versos da Canção “Strange Fruit”. O poema publicado em 1936, de autoria de Lewis Allan, pseudônimo de Abel Meeropool, lamenta o horrror do linchamento de dois homens negros no Sul dos Estados Unidos.

2 – GOULD, Stepen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991. (The mismeasure of man. New York: W. W. Norton, 1981).

3 – GOULD, Stepen J.ay. A falsa medida do homem, p. 43.

4 – Ver, entre outros: BETHENCOURT, Francisco. Racismos. Das cruzadas ao século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2018; SWEET, James H. – The Iberian Roots of American Racist Thought. William and Mary Quarterly. Vol. 54, pp. 143-166, (Jan./1997)

5 – Ver, entre outros: LARA, Silvia H. Fragmentos Setecentistas. Escravidão, cultura e poder na America Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; ZUÑIGA, Jean-Paul: La voix du sang. Du métis à l’idée de métissage en Amérique espagnole. Annales. Histoire, Sciences Sociales, 54, 1999, 2, pp. 425-452.

6 – DÁVILA, Jerry. Diploma de Brancura. Política Social e Racial no Brasil – 1917-1945. São Paulo: Editora da UNESP: 2006, pp. 147-197.

7 – Sobre a presença de negros nas universidade europeias ver: NORTHRUP, David. Africa’s Discovery of Europe. Oxford University Press, 2013; REGINALDO, Lucilene. “Não tem informação”: mulatos, pardos e pretos na Universidade de Coimbra (1700-1771). Estudos Ibero-Americanos, 2018. Dossiê “Cores, classificações e categorias sociais: os Africanos nos impérios ibéricos, séculos XVI a XIX” (no prelo).

8 – PINTO, Ana Flávia Magalhães. Fortes laços em linhas rotas. Campinas. 2014. Tese de Doutorado. Tese (Doutorado História), Unicamp.

9 – MASSUELA, Amanda. Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro. https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro. Acessado em 01/11/2018.

10 – LARA, Silvia H. Fragmentos Setecentistas, p. 282.

11 – Idem, 126.

12 – ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p.96.

13 – GRINBERG. Keila. O Fiador dos brasileiros. Cidadania, escravidão e direitos civis no tempo de Antonio Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 33.

14 – Idem, p. 23.

15 – Idem, 113.

16 – GOULD, Stepen Jay. A falsa medida do homem, p. 39

 


Lucilene Reginaldo é doutora em História Social pela Unicamp. É professora de História da África no Departamento de História e pesquisadora do Centro de Estudos em História Social da Cultura (Cecult) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Especialista em história da escravidão e das irmandades e devoções negras no Brasil, Portugal e Angola, no século XVIII, atualmente desenvolve pesquisas sobre a história dos marcadores da diferença e da racialização, no Império Português, nos séculos XIII e XIX.

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