Neste Mês da Mulher, quero justiça para Marielle e direitos para todas

O mês de março de 2021 se iniciou de um jeito diferente. Em um mês tradicionalmente marcado pelas lutas das mulheres, este é o primeiro ano em que nós, mulheres feministas, não poderemos ir às ruas reivindicar nossos direitos e celebrar as conquistas históricas do movimento brasileiro de mulheres.

Pela primeira vez passamos o mês de março totalmente em pandemia. Em 14 de março de 2020 as atividades no Brasil corriam normalmente.

Vale destacar que esse período do ano ganhou um significado de luta diferente para milhares de mulheres em todo o mundo em 2018, com o assassinato de minha irmã, Marielle Franco.

Esta também é a primeira vez que temos o enorme desafio de pautar a luta por justiça e pela elucidação completa das mortes de Marielle e de Anderson em meio a tantas tragédias igualmente graves, ocasionadas pela pandemia da Covid-19 no Brasil e no mundo.

Por isso, antes de qualquer coisa, é fundamental lembrar que o trabalho desenvolvido durante este ano pelo Instituto Marielle Franco foi também uma maneira de honrar a política que minha irmã sempre defendeu e de seguir com a luta pelos direitos das mulheres por quem ela tanto trabalhou em vida.

Neste inicio de um março tão singular, relembro Bell Hooks em uma passagem de seu livro “Teoria Feminista: da Margem ao Centro”, publicado em 1984, que sempre retomo quando penso no mês de luta das mulheres e na pluralidade que carregamos em nossas vidas.

“As mulheres não precisam eliminar suas diferenças para construir vínculos de solidariedade. Não precisamos viver sob a mesma opressão para combatermos a opressão em si […]. Podemos ser irmãs unidas pelo compartilhamento de interesses e crenças, unidas em nosso apreço pela diversidade, unidas em nossa luta para acabar com a opressão sexista, unidas na solidariedade política”, escreve a autora para abordar as diferenças existentes entre nós, mulheres.

A solidariedade política de que Hooks fala não exclui de forma alguma as diferenças existentes, por exemplo, entre mulheres brancas e negras, entre travestis e cisgêneras e entre bissexuais e lésbicas. Mas tenta dar conta de uma consciência maior que nós, mulheres, precisamos ter ao falarmos da luta política por justiça social e por nossos direitos. Dedico essa primeira parte do texto para saudar a necessidade de uma confluência entre lutas feministas.

A partir de agora reforço a importância de reconhecer as opressões específicas vivenciadas por mulheres negras dentro do movimento feminista brasileiro.

Digo isso porque, após três anos do assassinato de minha irmã, é cada dia mais nítido para mim, como já disse em outros espaços que tive oportunidade de ocupar, que quem me manteve de pé durante todo esse tempo foi o movimento de mulheres negras.

Mesmo não sendo próximas ou sem me conhecerem previamente, as diversas organizações e mulheres negras conseguiram me indicar caminhos possíveis para direcionar minha luta por justiça pela vida de Marielle e por tantas outras que sentiram da forma mais brutal possível o peso da nossa sociedade racista, sexista e LGBTfóbica.

Diversas inverdades foram ditas relacionadas a mim, a minha irmã e a minha família nos últimos três anos. Desde a eleição de Bolsonaro, convivi com ameaças e vi algumas das minhas liberdades serem minadas por conta de riscos à minha segurança e a da minha família. Isso ao mesmo tempo em que criei uma força inimaginável para conseguir articular ações de resposta à pandemia da Covid-19 no Instituto Marielle Franco e em diversos movimentos sociais em todo o Brasil.

Desta forma, posso dizer que, apesar de estarmos em tempos devastadores, estamos também em um momento único que nos oferece a oportunidade de repensarmos nossas lutas e prioridades e de reinventarmos a sociedade levando em consideração o que queremos viver daqui para frente.

Mulheres, especialmente as negras que vieram antes de mim, pensaram e construíram um projeto de futuro para nos permitir passar pelas dificuldades de hoje com mais lucidez e possibilidades de ação do que elas tinham. Da mesma forma, eu pavimento um caminho para que minhas filhas e as mulheres negras que ainda estão por vir possam sonhar e realizar seus próprios planos, além de consolidar uma sociedade mais justa do que a atual.

Hoje, tanto tempo depois, sinto que o legado plural de Marielle, do qual insisto em falar, se traduz no feminismo negro. Um feminismo que evidencia a conexão entre as opressões de raça, de classe e de gênero e reforça que só é possível haver libertação para nós, mulheres negras, quando as amarras racistas, patriarcais e de classe forem desmanteladas. Marielle trazia em si este signo e sua atuação era do lado das mulheres negras, que hoje conseguem ocupar espaços tão distintos e ao mesmo tempo vivenciam opressões tão semelhantes em nossa estrutura social.

Neste março, em que nos aproximamos de mais um dia 14, aniversário do assassinato de Marielle, meu mais profundo desejo é que possamos construir, com tranquilidade e segurança, uma sociedade mais justa. E aqui falo sobre justiça, da sua forma mais ampliada possível, que seja feita no crime contra a minha irmã e numa retomada de direitos básicos para todas e todos.

Anielle Franco

É cria da favela da Maré, no Rio de Janeiro e mestra em Jornalismo e Inglês pela Universidade de Florida A&M. Atualmente é mestranda do Cefet-RJ, cursando relações étnico-raciais. Trabalha como professora, palestrante, escritora e é a atual diretora do Instituto Marielle Franco, curadora do Projeto Papo Franco e do curso Marielles

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PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento

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