No ano passado, 29 mulheres mortas na intimidade deixaram 46 crianças órfãs

Menos mulheres foram assassinadas em contexto de violência doméstica do que em 2014, mas tal não significa que haja uma tendência decrescente. Este fenómeno tem oscilado todos os anos, refere o Observatório de Mulheres Assassinadas no relatório de 2015.

Por ANA DIAS CORDEIRO, do Público

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A residência do casal continuou em 2015 a ser o local onde mais mulheres são assassinadas no contexto de relações da intimidade. Também nesse ano, a arma de fogo voltou a ser a mais utilizada nestes crimes. A arma branca manteve-se como a segunda mais usada em crimes que envolvem a morte de uma mulher pelo marido ou companheiro em ligações amorosas passadas ou presentes.

Em 2015, houve igualmente um caso de morte por asfixia, um por afogamento e dois por estrangulamento. Em 16 situações consumadas, os filhos (do casal, ou só da vítima ou só do agressor) assistiram ao crime. Pelo menos 46 crianças e jovens ficaram órfãs, das quais dez com menos de 18 anos, e duas com menos de seis anos.

De acordo com o Observatório das Mulheres Assassinadas (OMA) da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), que lança hoje o relatório anual, com base na informação recolhida em toda a imprensa entre Janeiro e Dezembro de 2015, das 29 mulheres assassinadas em contexto familiar em 2015, 25 foram-no por ex-maridos ou maridos e companheiros.

São menos casos do que no ano passado, quando 45 mulheres foram mortas e, dessas, 37 foram assassinadas em relações de intimidade passadas ou presentes. Também menos mulheres foram vítimas de tentativas de homicídio: 39 casos em 2015, quando tinham sido 49 situações em 2014.

Relações abusivas
Os dados oscilam todos os anos desde 2004, pelo que o OMA não encontra uma tendência decrescente nem atribui significado quando constata a existência de menos casos em 2015. “Só podemos falar de tendência quando em anos consecutivos há diminuição. Não é o caso”, explica Elisabete Brasil, coordenadora do OMA. Entre 2013 e 2014, registou-se um aumento, como já se havia registado entre 2011 e 2012.

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“Os femicídios andam muito em ciclos e contraciclos”, constata a jurista. “Significa que há uma manutenção e não uma diminuição como a que se verifica com os homicídios em geral, em que a curva é descendente e a tendência foi decrescente” nos últimos anos, diz, referindo-se aos dados publicados todos os anos no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI).

“A situação não está controlada”, refere ainda sobre os homicídios em contexto conjugal. “Este tipo de homicídio tem características particulares”, salienta, referindo a ligação entre o femicídio (homicídio de mulheres) e a violência doméstica. Em 66% das situações, “era conhecida vivência em relação abusiva”. Essa violência era do conhecimento das entidades oficiais em 31% dos casos.

Tal como nos anos anteriores, a maioria das tentativas de homicídio e dos homicídios é identificada como decorrente de um contexto de violência doméstica, estando presente em 61% das situações reportadas, lê-se no relatório. E em pouco menos de um terço das situações, acontece depois de “a vítima ter terminado, tentado terminar ou ter manifestado intenção em romper com a relação, decisão não aceite pelo agressor”. Em 5% das situações relatadas, “foram ainda referidos os ciúmes e a atitude de possessão como motivação para o crime”.

Crimes premeditados
Elisabete Brasil salienta que, em cerca de dois terços dos casos, os femicídios aconteceram no âmbito de relações de intimidade violentas, não podendo estes homicídios ser confundidos com crimes passionais: “O crime passional está ligado às questões da paixão, ao amor. Aqui o que se verifica é que há uma relação abusiva.” E acrescenta: “Muitos destes crimes são premeditados. O objectivo é matar porque ela os deixou. A decisão não é aceite. E há uma reacção a este desamor. Há um exercício de poder e de controlo sobre alguém que ocupa quase uma imagem simbólica de objecto. E nesse caso o homem, quando desapossado desse objecto, reage de forma muito agressiva e letal. Não é porque se ama, é porque há um sentimento de posse, de propriedade relacional que falha”, explica.

O OMA contou também pelo menos 27 crianças ou adolescentes cujas mães sobreviveram a tentativas de homicídio no contexto familiar ou da intimidade, situações em que o agressor nem sempre foi condenado a prisão preventiva. Em 26 dos 39 casos de tentativas de homicídio, não há informação relativa à participação por violência doméstica junto das autoridades judiciais. Nos restantes, são conhecidos oito casos em que as mulheres denunciaram “várias vezes uma dinâmica relacional violenta” junto das entidades judiciais. Em três casos, havia um processo em curso. E num caso, o agressor cumpria uma pena suspensa por violência doméstica.

“Muitas das tentativas [de homicídio em contexto conjugal] são englobadas no crime de violência doméstica e a prisão preventiva é utilizada raras vezes como medida de coacção”, constata Elisabete Brasil. O que falta, acentua, é “monitorizar o próprio sistema”, identificar situações em que existiam processos por violência doméstica ou em que a perigosidade do indivíduo era do conhecimento das autoridades e perceber por que não foi possível evitar o crime.

Factores de risco
A informação existente não permite traçar um perfil completo do homicida. Em 14 situações, não foi possível identificar a sua situação profissional; oito exerciam uma actividade profissional, dois estavam no desemprego, e cinco estavam em situação de reforma. Mas do que se sabe, conclui Elisabete Brasil, o desemprego não pode ser apontado como um motivo, mas como um factor de risco. “O desemprego pode funcionar como um factor de risco acrescido, da mesma forma que o consumo de álcool ou de drogas”, mas a violência não acontece porque o agressor está desempregado ou porque consome álcool ou drogas.

As conclusões do relatório de 2015 são semelhantes às de anos anteriores, admite Elisabete Brasil, e nelas se realça que “a mera separação” num cenário prévio de violência doméstica no casal “pode não baixar o nível de risco”. “Muitos crimes são praticados depois da separação”, salienta a especialista da UMAR.

Ao contrário de 2014, em que as mulheres mais atingidas tinham entre 36 e 50 anos, em 2015 as mulheres com mais de 65 anos representam a maioria desses casos – nove, no total –, logo seguidas de idades entre os 36 e os 64. Duas tinham menos de 35 anos. “O femicídio e a tentativa de homicídio das mulheres ocorre durante todo o ciclo de vida das mulheres, nas várias faixas etárias.” Ou seja: todas podem ser vítimas independentemente da idade.

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