No Brasil, o ditado, “a grama do vizinho é mais verde”, para questões raciais, pode ser entendido como “os racistas são os outros”

No Brasil, o ditado, “a grama do vizinho é mais verde”, para questões raciais, pode ser entendida como “os racistas são os outros”. Só isso explica a surpresa com a supremacia branca e a psicodelia argumentativa por parte de pessoas de esquerda querendo dizer que o que aconteceu na Virgínia/EUA é resposta aos “violentos movimentos identitários”. Diria que isso é uma abominação cognitiva, pra não falar burrice e mau caratismo.

Foto: Christian Parente

por Djamila Ribeiro no Facebook

Vamos por partes. O Brasil também é um país supremacista branco no que diz respeito a poder. Existe uma supremacia branca no judiciário, nos altos escalões das empresas, na política institucional, nas universidades públicas, no poderio das mídias, enfim, nos espaços de poder. Ao passo que a população negra é marginalizada, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado e nos últimos 10 anos aumentou em 54,8% o assassinato de mulheres negras, só para dar alguns exemplos.

A questão é que aqui no Brasil, país fundado sob o mito da democracia racial, louvam-se as supostas pontes que nos unem e se negam a falar do altíssimos muros que nos separam. Todo mundo ama samba, mas é contra cotas raciais (até assina manisfesto). Galera adora feijoada, mas foi contra a PEC das domésticas. Galera usurpa a cultura negra para colocar símbolos brancos e diz que o importante é que” somos todos humanos” ou que orixá é energia e não tem cor. Galera adora tratar preto como fetiche pra capitalizar politicamente, mas age com violência quando pessoas negras querem o protagonismo.

Logo, o brasileiro é cínico. A mulher branca casa com o homem negro e diz que ele é moreno ou corta os cabelos dos filhos porque “é ruim”. E quando você a questionar, dizendo que isso é racismo, ela vai te responder: “como posso ser racista se meu marido é moreno como você?”

O mesmo vale para quem é adepto de religiões afro que vai dizer: “sou branquinha assim, mas sou do candomblé, não posso ser racista”.

Esse cinismo que faz gente desenterrar tataravó preto quando seu racismo é questionado. Eles te convidam pra jantar, mas esperam que você seja o bobo da corte ou o animal exótico. Eles te convidam pra casa deles, mas não sem dizer o quanto são bacanas e legais por serem “pra frente”.

Daí é mais fácil se chocar com os norte americanos porque eles não são racistas já que têm uma empregada quase da família.

Essa cegueira em enxergar o racismo como problema estrutural é agonizante e desprezível. Cadê a surpresa dessa galera ao entrar na USP e não ver uma professora negra? Cadê a surpresa ao ligar a TV e achar que está na Dinamarca?

Cadê o choque ao sequer questionar por que nunca tiveram um médico negro? Isso, por acaso, não é supremacia branca? Uma galera que só se incomoda com a indústria cultural quando negros passam a ganhar dinheiro, porque quando seu artista hipster vila madalena há décadas canta suas músicas pra ouvir em volta da ciranda, ele sequer discutia isso.

Uma galera que se diz “muito preocupada” com negros na publicidade, pois isso legitima o capitalismo, mas que nunca falou nada quando só eram brancos lá. E olha que eles ainda seguem na supremacia nesses espaços…

E, para aqueles que dizem que a culpa é dos movimentos identitários violentos, pergunto: como nasceu a KKK? A lei de Lynch? E, mesmo que se quisesse usar essa psicodelia, pergunto: defina violência? Reagir à violência do Estado é ser violento? Reagir à violência do racismo, é violência? Violento é o racismo, parça.

Quando Sueli Carneiro disse que “entre direita e esquerda, continuamos sendo pretas”, foi isso que quis dizer. Que entre esquerda e direita, ao menos a direita não é hipócrita em nos odiar. Sinto profundo desprezo por quem, mesmo com todas as pesquisas mostrando a vulnerabilidade da população negra, acha que o problema são os movimentos que lutam contra as desigualdades querendo se dizer aliado de luta.

Questionar certas militâncias jamais pode ser confundido com deslegitimar uma luta, direito histórico por humanidade. Isso é conversa furada de quem ainda segue querendo ser voz única. Aprendam a lidar com as coexistências, porque não tem volta.

O Brasil, decididamente, é o país do cínicos. O Haiti sempre foi aqui.

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